Pra que serve um cachorro?

 (Delman Ferreira)

— Para que serve um cachorro? — medita o poeta Mário Quintana.
— Serve pra gente falar sozinho — filosofa Quintana.
 
Inticado pelo poeta, eu me pergunto.
— Pra que serve um cachorro?

 Serve para nos levar a passear. Basta olhar essa gente feliz, levada de um lado para outro por seus cães. Praças, jardins, ruas, trilhas. Caminhando devagar. Observando os arredores. Saudando os passantes. Permitindo-se rir. 

Cachorros servem para nos conectar com os detalhes do mundo.

Meus filhos, naquela fase em que toda criança deseja um bichinho de estimação, sonhavam ter um cachorrinho. Queriam porque queriam. Eu já me imaginava dando comida, limpando cocô, banhos, vacinas. Ou seja, eles iam amar o amiguinho até a vírgula. A parte chata sobraria para mim.

— Não, de jeito nenhum. Nem pensar.

Eu era um dos líderes de uma greve na CELESC. Concentração na frente do prédio da administração, ali no Itacorubi. De repente, alguém encontra um cãozinho jogado no lixo. Recém-nascido, nem se aguentava nas pernas, devia ter um dia de vida.

Coração mole, esqueci as juras e as agruras. Levei para casa. Alegria geral. Puxa-estica. Todos queriam pegar ao mesmo tempo. Cheguei a temer pela integridade do cachorrinho. Suportaria tanto amor? 

No primeiro momento, nos disseram ser um macho. O nome escolhido foi Tatim — uma 'homenagem' ao presidente da CELESC, culpado pela greve.

Logo descobrimos que era fêmea. Começou, então, a gincana da escolha do nome. Cinco pré-adolescentes tentando concordar em alguma coisa? Missão impossível.

A cachorrinha parecia ter consciência da própria sorte. Resgatada de uma lata de lixo para uma vida cheia de amor e cuidados. Para demonstrar o carinho pelos da casa, vivia se esfregando nos pés de quem estivesse por perto. Bastava alguém sentar para comer, conversar, estudar ou ver TV, lá vinha a bichinha se enroscar e pedir cafuné.

Depois de um tempo, aquilo começou a incomodar. Até então, continuava a indefinição sobre o nome.

— Eita, pentelha! Essa cachorra não para de se esfregar na gente! Uma hora dessas alguém vai pisar nela sem querer.

— Sai das minhas pernas, sua pentelha!

De exclamação em exclamação, o nome foi se firmando naturalmente, sem alguém arbitrar. Pentelha.

Da nobre linhagem dos caramelos. Elegante. Delicada. Toda num pretinho básico. Portava uma echarpe natural, bege, do pescoço até o meio do peito, combinando com os olhos, também destacados por realces beges. Não havia quem não se apaixonasse pela Pentelha.

Minha Mãe não se conformava com o nome. Só se referia como “aquela cachorrinha”. Para evitar constrangimentos com a ala conservadora de parentes e amigos, resolveu-se batizar a Pentelha com um nome social. Pentelha Letícia de Alcântara Machado. Daí por diante, todos os cães e gatos da casa passaram a pertencer ao ramo dos Alcântara Machado.

Ao longo dos anos, todos os dias quando voltávamos para casa, Pentelha nos acarinhava com o olhar mais doce. Além disso, assumiu a tarefa de zelar pela segurança. Ai de quem tentasse entrar no quintal sem ser convidado.

Foram 19 anos de Pentelhices.

Um cachorro serve, também, pra gente olhar para trás.



Comentários

  1. Sei bem o que é isso. Na infância, adolescência, juventude, vida adulta, enfim quase a vida toda, sempre passei por várias emoções com esses amigos, como são os bons amigos, que são para a vida toda.

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  2. Conheço bem a amizade de um pet e mais ainda do caramelo

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  3. Os animais são tudo de bom. Às vezes melhores que os humanos…

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  4. Cresci numa casa numerosa com gatos e cachorros, depois de “grande” e mãe veio a vontade de ter um cão, porém, morando em apartamento. Que decisão sábia, ele me leva a todos os lugares, me faz andar devagar, refletir sobre como foi o dia, ele me faz admirar o ordinário. 🥰

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