Uma professora negra
(histórias de uma Florianópolis conhecida por poucos)
(Delman Ferreira)
Ester abre o sorriso largo quando relembra. Em meados da década de 1950, nos finais de
semana ou feriados, as famílias saíam para passear na Praça XV. Iam à missa,
seguiam as procissões, ou simplesmente passeavam, subindo e descendo em volta
da praça. Era o footing.
Durante os passeios, as jovens sempre conseguiam um jeito de dar umas escapadinhas, espiar os rapazes que perambulavam pela praça. A emoção transbordava quando ocorriam trocas de olhares ou, principalmente, quando conseguiam namorar escondido. Ester não disfarça uma ponta de vaidade.
— Ao passar com as amigas, eu arrancava uns suspiros de
admiração.
Havia uma tradição, os negros subiam e desciam por um lado
da praça, enquanto os brancos faziam o mesmo pelo outro lado. Não se
misturavam.
— Como assim, os negros por um lado da praça e os brancos
pelo outro lado? Por que isso? — pergunto meio encafifado.
— Não sei — respondeu Ester — eu não sei se alguém organizou
isso, eu já alcancei assim, entrei no embalo e nunca perguntei o porquê. Para
mim, sempre foi assim. Depois, quando os negros começaram a ocupar o interior
da Praça XV, os brancos se deslocaram para a Rua Felipe Schmidt, onde havia uns
cafés. Mas sempre separados, negros de um lado e brancos em outra região.
Só no Carnaval, às vezes, se misturavam um pouco.
— E foi nesses passeios que a senhora conheceu seu marido?
— É, foi mais ou menos. Minha mãe ia para a missa e eu ia
caminhar na praça com as amigas. A gente descia por um lado e subia pelo
outro. E os rapazes ficavam parados na beira da praça. Ou encostados nas
paredes do outro lado da rua. Fazendo galanteios para a gente. Foi numa dessas
que conheci o Warnel.
Mas não foi assim rápido como se imagina hoje em dia.
Demorou um tempo até conseguirem falar.
— Certo dia, procissão do Senhor dos Passos, Warnel
aproveitou e chegou perto de mim perguntando se podia conversar. Quando estava
nervoso, o Warnel ficava meio gago, eu fiquei morrendo de vontade de rir, mas
não podia mostrar pra ele. E foi assim que começamos a namorar. E ficamos
assim um bom tempo, a gente só se encontrava na praça. Tinha que aproveitar
enquanto minha mãe estava na missa pra fugir e namorar escondido.
— O que mais atraiu a senhora?
— O que eu mais gostei foi ele não ter preocupação por eu
estudar. Naquela época, os rapazes não gostavam de moças que estudavam, diziam
que a mulher ficava metida a sabidona e, depois, ia querer mandar no marido. Já
o Warnel não se preocupou e eu continuei a estudar e, quando me formei, ainda
antes de casar, fui trabalhar como professora.
Depois de um tempo nesse namoro travado, passaram a falar em
casamento. Ester deu um ultimato, só se casaria se ele tivesse emprego.
— A senhora estudou até que período? Chegou a completar a
universidade? Quando foi que começou a trabalhar como professora?
— Não cheguei a fazer curso superior. Gostaria de ter
estudado Serviço Social, mas não deu. Fiz o curso fundamental no Colégio
Getúlio Vargas, depois fiz o Normal Regional, e me formei como Normalista. Mais
tarde, fiz magistério no Instituto de Educação.
Ester foi professora durante 27 anos. Começou com apenas 18,
lecionando em escolas localizadas em bairros distantes do centro de
Florianópolis. Locais de difícil acesso. Primeiro, na Costa de Dentro, depois no
Morro das Pedras, mais tarde na Costeira do Pirajubaé e, finalmente, no Pantanal,
no Colégio Beatriz de Souza Pinto.
Quando iniciou na Costa de Dentro, não havia ônibus
regulares. Ficava hospedada na casa de uma senhora. Comia o que os pescadores
traziam na rede e o que se plantava no quintal. Para chegar na escola, Ester
atravessava toda a praia e mais uma pequena trilha. No caminho, algumas vezes
cruzou com aranhas, lagartos, até mesmo cobras. Ela morria de medo de cobras.
Certa vez, ao chegar no caminho para a escola, notou algo
mexendo no chão, um pouco à frente. Olhou assustada e percebeu ser uma cobra
atravessando a trilha. Já haviam lhe explicado que cobra só ataca caso se
sinta ameaçada. Diziam para ficar quieta, a cobra seguiria seu percurso.
Ester ficou estática, vontade de levitar para escapar dali. Não piscava, não
respirava, pensou rezar, mas o medo e a tensão a fizeram esquecer até as rezas.
A cobra também parou por um momento e ficaram ali, as duas, uma suspeitando da
outra. Até aparecer um homem, também a caminho da escola, e a socorreu. Durante
um tempo, ela nunca mais atravessou aquela trilha sozinha.
— Sempre fiz questão de meus filhos e netos estudarem, até
chegar numa faculdade — conta Ester com orgulho. — Três das minhas filhas se
formaram em Pedagogia. A outra, não quis ser professora e trabalhava numa
repartição pública. Agora, tenho uma grande satisfação de ver meu neto, com
apenas 22 anos, já se formando em Direito.
— Seu marido, ele também gostava de estudar, de ler?
— Warnel não era muito de ler. Ele era fissurado apenas no
Sindicato, na Copa Lord e no Avaí. E era ciumento. Quando eu era mais nova, sonhava
sair no Carnaval, queria ir de baiana na Escola. Warnel nunca deixou.
Foi ela quem o obrigou a estudar. À noite, quando retornava
depois de dar aulas e ele voltava das reuniões do sindicato, ela o obrigava a
estudar.
Salve 15 de outubro!
Para conhecer mais histórias de professoras negras de Florianópolis, leia a biografia da professora Antonieta de Barros — obra da Professora, negra, Jeruse Romão. Também indico o livro Sai da frente, estafermo! — ficção histórica, de autoria de Paulo Sá Brito e Delman Ferreira, que entrelaça parte da história de Florianópolis com a saga de cinco mulheres negras ao longo de 170 anos.
Os livros citados foram publicados pela Editora Cruz e Sousa (www.editoracruzesousa.com.br).
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