Aos 87 anos, fugiu para respirar

 (Delman Ferreira)
aos 87 anos
ele fugiu de casa
 
    não fazia sentido
 
esperavam dele
que fosse tal como esperavam
sem nunca ser como queria
 
    fugiu de casa
 
tanta vida ainda por desafiar
não ia ficar ali apoitado
 
    não fazia sentido
 
esperar
que esperassem dele
o que ele esperava
que esperassem dele
 
    fugiu
queria respirar
 
    R.I.T.A. Perfeita Rita, me dê licença. 
Rita pode ser Lúcio, ou Dona Maria, ou Zé Potoca. Você será quem eu quiser ou precisar a cada momento.
Pode ser uma companhia para jogar dominó, ou baralho, até conversa fora. Cozinhar minha comida nas horas certas, nas doses e medidas exatas. Limpar a casa na hora de limpar a casa. Sair para caminhar no momento certo do sol. Conversar sobre o tempo, ou as últimas descobertas da medicina, os impressionantes avanços da física quântica — ou, quem sabe, o resultado do futebol.
Você senta comigo e fica em silêncio quando esse é todo o meu desejo. Me dá banho, faz massagens, até ensaia carinhos. Programados, mas excitantes. Troca minha roupa. Controla os horários dos remédios. Diz o que posso ou não posso. Parece perfeita. Perfeita até demais. Mas também carrega manias.
Malvadeza. Pura malvadeza. Insiste em destruir minha dignidade com fraldas. Não me deixa ficar com a janela aberta à noite apreciando o luar. São as correntes de ar, me explica. Decide com quem posso ou não posso conversar. Quais assuntos. Por quanto tempo. Determina programas. Decide, decide e decide. Mania de decidir. 
Rita, o que seria de mim sem ti?
Minha vida já não sou eu. 
Pré-julgada.  
Pré-formatada.  
Pré-visível.  
Predatória.
Determinam o padrão de normalidade 
— fazer, sentir, desejar — dentro de limites.
Sem crianças. Sem contratempos. Sem futuro. Sem vida.
Algoritmos. 
Eles sabem como uma pessoa da minha idade deve ser.
— foram programados — 
Até meu cachorro faz o que esperam dele.
Não aguento mais 
ser manietado por essa R.I.T.A. 
— Robô Interativo de Trabalho e Assistência.

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