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O vírus letral

 (Delman Ferreira)           Brisal já fora uma terra vibrante. Havia cafés literários, feiras de poesia, histórias contadas nas praças ao cair da noite, crianças embaladas à voz de histórias.  Ninguém sabe dizer quando os livros começaram a pesar. Primeiro veio o gracejo. — Ler dá sono. Depois, a piada recorrente. — Poeta é quem não tem o que fazer. O riso, aos poucos, perdeu a inocência. Quem andava com um livro debaixo do braço virou alvo. — Olhem o cabeça de papel! — Vai tropeçar no mundo real! As páginas empoeiraram. Livros tornaram-se estorvo. Os jovens, hipnotizados por telas fugazes, diziam não ter tempo para ler. As mochilas se esvaziaram de histórias. A interpretação deu lugar às respostas prontas.  Professores que insistiam na leitura passaram a ser tratados como perdedores, relíquias inúteis. Memes substituíram textos. Ditados pobres ocuparam o lugar da complexidade. Em uma geração, a leitura tornou-se obsoleta. A escrita, um conj...

Praeiudicium

(Delman Ferreira) — Não tenho amigos negros, gays, indígenas, feministas ou esquerdistas... A luz trepidou. Bomba de incontáveis megatons explodiu as redes sociais. Xingamentos instantâneos digitados entre um piscar e outro, cancelamentos decretados por perfis inominados, marchas virtuais de protesto. Socialaites enfurecidas, influencers ensandecidos. Comentaristas espumam argumentos reciclados. Suas excelências exigem condenação perpétua. Ungidos conclamam exércitos dos céus e dos infernos. Gente que atravessa a rua quando vê um pobre, um negro ou alguém de vermelho,  aproveita   para purgar os pecados. Quando baixou a poeira radioativa, ele conseguiu completar a frase. — ...meus amigos são pessoas!

Carrinho no presépio

 (Delman Ferreira) — Deus é o pai de todas as crianças. Todos somos filhos de Deus — dizia Irmã Bernardete, professora de catecismo. Aquela revelação entrou pelos ouvidos de Daniel e escorregou direto ao coração. Depois, explodiu e se transformou num sorriso, como fogos de artifício. — Então, também tenho pai! Filho de mãe solteira, Daniel sentia falta de um pai. Todos os amiguinhos falavam do pai ensinando, ajudando, defendendo. E dando presentes legais. Morria de inveja quando ouvia algum amigo contar uma bronca. Sonhava com um pai brigando e brincando. Se Irmã Bernardete diz, deve ser verdade. Ela é freira, não ia mentir. Eu também tenho pai para me proteger. Até pedir brinquedo de presente. Chega o Natal, Daniel é só expectativa. — Eu quero um carrinho de controle — sonhava Daniel. Escreveu um bilhete e entregou para Irmã Bernardete. Pediu para entregar ao pai. Ela saberia como falar com ele. Sonhou, noite após noite. Quase não dormia, só imaginando a reação dos amigos e as cor...

Desvendando um grande mistério

  (Delman Ferreira) Brincava com Ben, meu neto de 4 anos. Voar como o Homem-de-ferro. Eu o pegava no colo, meus braços segurando o peito e as pernas, cabeça para a frente, pés para trás, e jogava na cama num voo magistral, tal qual um super-herói. A mãe não sabia se ria junto ou se salvava o filho do avô irresponsável. A cama gemia, mas aguentava firme. A cada vôo sensacional, nós dois desatávamos o risador. Ele se pendurava no meu pescoço e, daquele jeito irresistível, gritava: — De noooovo! — Aquela energia inesgotável. Até perceber que ele estava com vontade de fazer xixi, mas não queria parar a brincadeira. — Ben, tás com vontade de fazer xixi? Vai lá fazer xixi. — Não, não tô com vontade. — Sabia que super-herói também faz xixi? Ele vai voando até o banheiro e faz xixi. — Nãããooo, super-herói não faz xixi. — Claro que faz, ele bebe água e come comida, então ele faz xixi e coco. — Nãããooo, ele não come e não bebe água. — Claro que come, senão como é que ele fica forte? — Vô, tu...

O pecado de Adão

   (Delman Ferreira) Aprendeu a andar. O mundo passou a não ter tamanho. O quintal. Galinhas e latidos. Carrinhos. Estripulias. A rua. Frutas do vizinho. Bombinhas. Bola. Passarinhos. Viver era explorar horizontes. Mas vieram as aulas de religião. Adão descobriu-se nu.  O maior pecador do mundo.

O cronista do concreto

 (Delman Ferreira) O velho Solar das Acácias, onde ficava a pensão, era um labirinto de escadas alarmistas e paredes indiscretas. — Cuidado, meu filho — alertou D. Elvira, dona da pensão — aqui, as paredes têm ouvidos. Júlio apenas fitou o assoalho de tábuas, descrente. Mas a solidão do quarto dilatava cada ruído. Sem ter com quem trocar impressões, começou a desconfiar das paredes. Às vezes tinha certeza de ouvir passos, risos, soluços, vindos de um não lugar. Brigas abafadas, preces suspensas. Vidas escorrendo pelas frestas. Só o Sr. Hector parecia alheio a tudo. Sentava-se sempre no mesmo canto da varanda, com um velho caderno espiral equilibrado no joelho. Observava, anotava, voltava ao silêncio. Nunca interferia. Júlio sonhava ser escritor. Intrigava-se com aquele homem. O que tanto registrava? Por quê? Criou coragem e puxou conversa. Percebeu um leve sotaque francês. Mas a conversa nãpo fluiu com ele esperava. Hector só ouvia, pouco interagia. Certo dia, uma presença nova mud...

Silêncios antigos

 (Delman Ferreira) O pai do pai do pai do Bentinho foi escravizado. Fazia de tudo. Sofria de tudo. Jamais saiu da fazenda, como parte da terra. O pai do pai do Bentinho, filho de escravizados, broto do mesmo barro. Fazia de um tudo. Tangia gado, plantava, colhia, moía, limpava. Mantinha o cercado.  O pai do Bentinho, mesmo liberto, sem encontrar alternativa, também foi ficando por ali. Fazendo de um tudo. Vivia das sobras da fazenda. Sobras de comida e de roupa. Sobras de coisas que não serviam mais para a Casa Grande. Sobras de tudo, menos de vida. Bentinho não teve oportunidade para conhecer outro destino. A vida por ali corria sempre igual, como roda d’água que gira sem sair do lugar. Seguiu fazendo de um tudo. Era Bentinho pra lá e Bentinho pra cá. Nada acontecia sem Bentinho benzer. Os sinhozinhos gostavam muito do Bentinho. Do pai do Bentinho. Do pai do pai do Bentinho... — Nós os consideramos como gente da família. Comem e vestem do que comemos e vestimos...

Cheiros, heróis e sonhos não envelhecem

  (Delman Ferreira) Perto de casa, a padaria. Darcy acordava às quatro da manhã, quando a mãe precisava saltar da cama para ir trabalhar. Demorava-se, virando de um lado a outro, embevecido, desfrutando o aroma de pão assando. Os amiguinhos sonhavam com picolé, balas ou chocolate. Ele, com o cheirinho do Pão do Ribeirão, o melhor da cidade. Demorava-se na cama aguardando o chamado da avó para caminharem até a escola. Professora primária no Grupo Escolar Maria Clara. Darcy era um pirralho de 5 anos incompletos quando ela passou a levá-lo à escola. Ficava no fundo da sala brincando com a cartilha. Aprendeu a ler e escrever bem antes de ter idade para ser matriculado. A mãe, empregada doméstica. Algumas vezes o levava ao trabalho. Darcy detestava. Preferia a escola. Porque enquanto a mãe se esfalfava na labuta de cuidar da casa, ele não podia sair da cozinha. Pelo vão da porta, espiava os filhos da patroa. Brinquedos que nem imaginava existirem. Percebia a alegria dos meninos, mas...

Aos 87 anos, fugiu para respirar

  (Delman Ferreira) aos 87 anos Olício fugiu de casa        não fazia sentido   esperavam dele que fosse tal como esperavam sem nunca ser como queria        fugiu de casa   tanta vida ainda por desafiar não ia ficar ali apoitado        não fazia sentido   esperar que esperassem dele o que ele esperava que esperassem dele        fugiu queria respirar       R.I.T.A. P erfeita Rita, me dê licença.        Rita pode ser Lúcio, ou Dona Maria, ou Zé Potoca. Será quem eu quiser ou precisar a cada momento. Pode ser uma companhia para jogar dominó, ou baralho, até conversa fora. Cozinhar minha comida nas horas certas, nas doses e medidas exatas. Limpar a casa na hora de limpar a casa. Sair para caminhar no momento certo do sol. Conversar sobre o tempo, ou as últimas descobertas da medicina, os impressionantes avanços da física quântica — ou, quem sabe, o resultado...

Buquê de flores

(Delman Ferreira)   — Você não me assume. Tem vergonha de mim? É por causa da minha cor? Por que sou pobre e trabalho atrás desse balcão? Vozerio alto. Música ao vivo. Gente circulando. Gente rindo.  Gente que pede mais um chopp. O mundo inteiro parecia falar ao mesmo tempo. Caixa de pedidos.  Pilha de garrafas. Por trás do caos, duas vozes nervosas tentam se entender. —  Montanha de copos. Não consigo te escutar — Fernando tenta brincar para aliviar. — Nunca vamos juntos a lugar algum. Só pode ser por vergonha. Eu assusto as pessoas? — Não é assim, você sabe. — Afastando uma garrafa, Fernando tenta alcançar-lhe o rosto e fazer um carinho, prender uma mecha de cabelo rebelde. — Eu queria só um cinema, um passeio, um café na rua. Fernando tenta se explicar, por trás das garrafas, dos copos, das vozes.  — Tudo a seu tempo. Eu te prometo que vamos passear muito, viajar, conhecer o mundo. Me dá um tempo. — Eu sei que tu também sonhas com isso.  Assistir a uma s...