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Buquê de flores

(Delman Ferreira)   — Você não me assume. Tem vergonha de mim? É por causa da minha cor? Por que sou pobre e trabalho atrás desse balcão? Vozerio alto. Música ao vivo. Gente circulando. Gente rindo.  Gente que pede mais um chopp. O mundo inteiro parecia falar ao mesmo tempo. Caixa de pedidos.  Pilha de garrafas. Por trás do caos, duas vozes nervosas tentam se entender. —  Montanha de copos. Não consigo te escutar — Fernando tenta brincar para aliviar. — Nunca vamos juntos a lugar algum. Só pode ser por vergonha. Eu assusto as pessoas? — Não é assim, você sabe. — Afastando uma garrafa, Fernando tenta alcançar-lhe o rosto e fazer um carinho, prender uma mecha de cabelo rebelde. — Eu queria só um cinema, um passeio, um café na rua. Fernando tenta se explicar, por trás das garrafas, dos copos, das vozes.  — Tudo a seu tempo. Eu te prometo que vamos passear muito, viajar, conhecer o mundo. Me dá um tempo. — Eu sei que tu também sonhas com isso.  Assistir a uma s...

Pra que serve um cachorro?

  (Delman Ferreira) — Para que serve um cachorro? — medita o poeta Mário Quintana. — Serve pra gente falar sozinho — filosofa Quintana.   Inticado pelo poeta, eu me pergunto. — Pra que serve um cachorro?   Serve para nos levar a passear. Basta olhar essa gente feliz, levada de um lado para outro por seus cães. Praças, jardins, ruas, trilhas. Caminhando devagar. Observando os arredores. Saudando os passantes. Permitindo-se rir.  Cachorros servem para nos conectar com os detalhes do mundo. Meus filhos, naquela fase em que toda criança deseja um bichinho de estimação, sonhavam ter um cachorrinho. Queriam porque queriam. Eu já me imaginava dando comida, limpando cocô, banhos, vacinas. Ou seja, eles iam amar o amiguinho até a vírgula. A parte chata sobraria para mim. — Não, de jeito nenhum. Nem pensar. Eu era um dos líderes de uma greve na CELESC. Concentração na frente do prédio da administração, ali no Itacorubi. De repente, alguém encontra um cãozinho jogado no lixo. R...

Amo o amor dos marinheiros

  amo o amor dos marinheiros que amam e se vão (Pablo Neruda) Beija como se o mundo fosse acabar no próximo porto. Navega entre os continentes como quem dança entre sonhos — leve, sorridente e sempre de partida. A voz tem o timbre das ondas. Riso fácil dos que sabem partir antes que seja tarde.  Ama as mulheres — negras, brancas, amarelas, morenas, ruivas, loiras, mestiças — com a mesma febre breve de quem não pensa fincar âncora. Parte como se nunca tivesse chegado. Em cada recanto portuário, cada enseada esquecida pelo mapa, deixa atrás de si uma história interrompida à espera de novo tempo e nova vida. Ciganos, negros, indígenas, asiáticos, eslavos. Olhos puxados, cabelos crespos, pele clara, sotaques diversos. Os filhos são tantos, tão múltiplos, impossível saber quantos. Não os cria, mas exige amor incondicional. Deu-lhes a vida, devem ser gratos. O nome de batismo é Javier. Mas em cada porto empresta seu corpo a identidades fluidas. Um artesão de momentos. Não mente,...

Uma professora negra

  (histórias de uma Florianópolis conhecida por poucos) (Delman Ferreira)   — Ah, meu filho, naquela época não era fácil namorar. Moça de família não saía de casa sozinha. Era sempre com a mãe, a avó, algum irmão, até o pai. Nunca ficava sozinha com um rapaz.  Ester abre o sorriso largo quando relembra. Em meados da década de 1950, nos finais de semana ou feriados, as famílias saíam para passear na Praça XV. Iam à missa, seguiam as procissões, ou simplesmente passeavam, subindo e descendo em volta da praça. Era o footing.   Durante os passeios, as jovens sempre conseguiam um jeito de dar umas escapadinhas, espiar os rapazes que perambulavam pela praça. A emoção transbordava quando ocorriam trocas de olhares ou, principalmente, quando conseguiam namorar escondido. Ester não disfarça uma ponta de vaidade. — Ao passar com as amigas, eu arrancava uns suspiros de admiração.  Havia uma tradição, os negros subiam e desciam por um lado da praça, enquanto o...

Paralelas

 (Delman Ferreira) Clínica e Maternidade Espaço Amarilis da Mulher. Assistida por equipe especializada em parto humanizado, no dia 4 de dezembro de 2025, às 10 horas e 23 minutos, nasce Maria. Hospital Universitário. Assistida por plantonistas, no dia 4 de dezembro de 2025, às 10 horas e 23 minutos, nasce Maria. Alameda Beira Mar.  Quarto de bebê preparado com esmero ao longo de meses revela, em cada detalhe, o carinho e a expectativa pela chegada de Maria. Ambiente limpo e harmonioso, como se estivesse suspenso no tempo, aguarda o primeiro choro, o primeiro suspiro, o primeiro olhar de quem já é amada muito antes de chegar. Dois quilômetros acima, altos da Ladeira do Antão. Casebre pequeno — um cômodo dividido por lençóis amarrados em fios — aguarda Maria. O chão é de cimento batido, as paredes mostram sinais do tempo, com pintura manchada pela umidade. Uma caixa de madeira será o berço de Maria.  Maria da Alameda é filha de família estruturada. O pai,...

Crochê, macramé e paixões

(Delman Ferreira) Quando se viram pela última vez, urravam e tentavam arrancar os olhos um do outro. — Fascista! — Comunista! Trinta anos depois, por acaso — ou castigo — entraram no mesmo bar. Entreolharam-se ressabiados, com a timidez de quem já foi inimigo e agora se sente ridículo por isso. Por fim, um chamou o outro para sentarem juntos. Afinal, já faziam trinta anos. Trinta. — Como vai? — pra cá. — O que tem feito? — pra lá. Bateram os copos. Sacudiram o gelo. Engoliram o orgulho. Foram quebrando o sem jeito. Vieram as preliminares. — Quanto tempo! — Pois é, quanto tempo! — O que você faz agora? — Professor. História. — Tá brincando… Eu também sou professor! Economia. No IF lá da Palhoça. — ' Xpressionante ! Hahaha! Risos. Mais uma rodada. — Você casou? — Casei. Separei. — Jura? Eu também! Cinco anos já. — A vida, né… pelo menos mantenho boa relação com a ex. — Eu também! Tô sempre com os filhos. Já tenho até netos! — Eu também! Curtiram as fotos dos ne...

Bigode e artesão

(Delman Ferreira) Vaidoso, Manoel Cândido cultuava os bigodes como quem cuida de uma delicada e rara orquídea. Jamais um fio fora de ordem, alinhamento militar, harmonia musical, lado esquerdo e lado direito espelhos um do outro. Obra de arte. Nem o próprio Manoel ousava tocar. Uma única pessoa no mundo estava autorizada a retocar e modelar. O barbeiro Porfírio cuidava dos bigodes de Cândido como um artesão no domínio de seu ofício, um mestre perseguindo a perfeição. Naquela manhã de segunda-feira, como repetia todos os dias, Manoel investigou-se diante do espelho, mirou de um lado, de outro, distanciou, aproximou. Admirou o bigode. Mas uma ruga de incômodo marcou a meditação. Percebeu um fio, uma ameaça rebelde a levantar-se contra a ordem unida. Nem pestanejou, decidiu imediatamente. Antes de qualquer outra providência, passaria no Porfírio. Abriu as janelas, olhou o horizonte, sondou o céu para ver a disposição das nuvens. Precisaria casaco? Guarda-chuva? Desceu para a Praça da Repú...