O cronista do concreto

 (Delman Ferreira)

O velho Solar das Acácias, onde ficava a pensão, era um labirinto de escadas alarmistas e paredes indiscretas.

— Cuidado, meu filho — alertou D. Elvira, dona da pensão — aqui, as paredes têm ouvidos.

Júlio apenas fitou o assoalho de tábuas, descrente.

Mas a solidão do quarto dilatava cada ruído. Sem ter com quem trocar impressões, começou a desconfiar das paredes. Às vezes tinha certeza de ouvir passos, risos, soluços, vindos de um não lugar. Brigas abafadas, preces suspensas. Vidas escorrendo pelas frestas.

Só o Sr. Hector parecia alheio a tudo. Sentava-se sempre no mesmo canto da varanda, com um velho caderno espiral equilibrado no joelho. Observava, anotava, voltava ao silêncio. Nunca interferia.

Júlio sonhava ser escritor. Intrigava-se com aquele homem. O que tanto registrava? Por quê?

Criou coragem e puxou conversa. Percebeu um leve sotaque francês. Mas a conversa nãpo fluiu com ele esperava. Hector só ouvia, pouco interagia.

Certo dia, uma presença nova mudou o ar da pensão. Uma menina, negra como Júlio, entrou sorrindo. Olhar doce, penetrante, desses que desnudam. O velho casarão pareceu suspirar quando ela chegou.

Nas mãos, um exemplar gasto de um livro do celebrado autor H. C. Torel, repleto de marcações. Cecília lia como quem conversa com o autor.

— Esse livro é perfeito para minha vivência no teatro. É como um laboratório, os personagens são tão reais, parecem gente do bairro — ela explica enquanto sobe as escadas. A saia rodada desenha no ar um gesto leve, quase musical.

Júlio percebeu o sorriso enigmático do Sr. Hector ao ouvir a explicação da afilhada. 

Na quinta-feira seguinte, esperou por ela contando o tempo pelas batidas do coração. Folheou um jornal no quintal sem conseguir entender uma linha. Notou a ausência do Sr. Hector.

— Recebeu um pacote do exterior — disse D. Elvira. — Quando isso acontece, ele some por uns tempos.

Cecília chegou trazendo luz e movimento. Como sempre, catalisando as atenções. O padrinho pedira para organizar os livros enquanto estivesse fora. 

Júlio ajudou a arrastar um móvel. A velha estante, fixa naquele local desde sempre, resistiu. Houve apenas uma leve inclinação. Bastante para uma caixa escondida cair por cima dos dois e espalhar uma pilha de cadernos espiral pelo chão.  O corredor ecoou o lamento seco da caixa caída. 

Caderno espiral. Senhor Hector. A curiosidade falou mais alto. Folhearam juntos. Caligrafia precisa. Conversas picotadas, lamentos, confissões de vizinhos. O Solar das Acácias inteiro desnudado na ponta do lápis. Uma foto de Cecília menina. 

Júlio virava as páginas com a angústia de quem teme tanto encontrar quanto não encontrar o que espera.

    — O rapaz do quarto 18 fala com a mãe ao telefone. Mal segura o choro. Esse menino, negro, vai enfrentar muita dureza na vida, mas… – e o resto, rasurado, como se o autor desistisse de prever futuros.

O susto gelou o suor frio nas mãos de Júlio. As paredes tinham olhos e ouvidos. Sentiu-se invadido. Mas também fascinado por alguém capaz de transformar cotidiano em vidas literárias. Foi tomado por um desejo intenso de conhecer o velho.

Cecília percebeu.

— Meu padrinho sempre diz que as paredes falam, mas as pessoas não sabem ouvir — disse, sorrindo. — Ele acha que ouvir é uma arte. Quem sabe você tem esse dom, hein?

Enquanto guardavam os cadernos, um recorte de jornal escapou. Matéria elogiosa a H. C. Torel. Dizia se tratar do maior cronista vivo, o cronista do concreto, capaz de transformar vidas comuns em arte universal.

Júlio releu o nome. Olhou o caderno. Olhou a varanda vazia.

Avesso à imprensa, invisível aos holofotes, ali, naquele sobrado antigo, entre tábuas rangentes e pequenos segredos, o mundialmente celebrado autor H. C. Torel, era apenas o Sr. Hector.

A arte ouvindo o concreto.

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