O vírus letral

 (Delman Ferreira)
        
Brisal já fora uma terra vibrante. Havia cafés literários, feiras de poesia, histórias contadas nas praças ao cair da noite, crianças embaladas à voz de histórias. 
Ninguém sabe dizer quando os livros começaram a pesar.
Primeiro veio o gracejo.
— Ler dá sono.
Depois, a piada recorrente.
— Poeta é quem não tem o que fazer.
O riso, aos poucos, perdeu a inocência. Quem andava com um livro debaixo do braço virou alvo.
— Olhem o cabeça de papel!
— Vai tropeçar no mundo real!
As páginas empoeiraram. Livros tornaram-se estorvo. Os jovens, hipnotizados por telas fugazes, diziam não ter tempo para ler. As mochilas se esvaziaram de histórias. A interpretação deu lugar às respostas prontas. 
Professores que insistiam na leitura passaram a ser tratados como perdedores, relíquias inúteis. Memes substituíram textos. Ditados pobres ocuparam o lugar da complexidade.
Em uma geração, a leitura tornou-se obsoleta. A escrita, um conjunto de sinais quase indecifráveis.
Não houve decreto. Nenhuma autoridade proibiu. Foi o próprio povo quem se encarregou do exílio da lucidez.
Livrarias fecharam por falta de clientes. A Biblioteca Municipal virou templo religioso. Escritores passaram a ser evitados, como quem carrega mau hálito.
Até que vieram as fogueiras. Os livros queimavam enquanto o povo dançava e bebia celebrando a vitória sobre o que já não compreendia.
Brisal continuou funcionando, mas algo começou a desbotar. O comércio minguou. As conversas ficaram rasas, sempre pela metade. Sem histórias, a cidade perdeu o hábito de imaginar. Sem imaginação, deixou de planejar. Sem planos, deixou de prosperar.
Quando o centenário carrilhão quebrou, ninguém soube consertá-lo. Culparam o destino.  Manuais jaziam abandonados como inutilidades. Não perceberam que, sem leitura, até a memória se desfaz.
Certo dia, crianças brincando nas ruínas da antiga escola encontraram uma caixa de livros. — poemas, fantasias, histórias. Sem saber o que fazer, levaram para a professora, alvo constante de zombaria por ainda gostar de ler em papel.
Luzia abriu um livro qualquer, num página qualquer, e leu um poema com voz tímida. Notou curiosidade. Leu outro, agora com firmeza. Depois uma fantasia. Convidou as crianças a se imaginarem dentro das histórias.
Atrás das ruínas, uma alegria genuína começou a dissipar a névoa espessa.
Um homem assustou-se com os risos. Disse que as crianças estavam sendo enfeitiçadas. Padres e policiais foram chamados para livrá-las da influência nefasta daquela amante de livros.
Mas já era tarde.
O vírus havia infectado suas veias. Pelo resto da vida, aquelas crianças procurariam sentir novamente a vertigem da primeira leitura, do primeiro poema, da primeira imaginação.

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