Cheiros, heróis e sonhos não envelhecem
(Delman Ferreira)
Perto de casa, a padaria. Darcy acordava às quatro da manhã, quando a mãe precisava saltar da cama para ir trabalhar. Demorava-se, virando de um lado a outro, embevecido, desfrutando o aroma de pão assando. Os amiguinhos sonhavam com picolé, balas ou chocolate. Ele, com o cheirinho do Pão do Ribeirão, o melhor da cidade.
Demorava-se na cama aguardando o chamado da avó para caminharem até a escola. Professora primária no Grupo Escolar Maria Clara. Darcy era um pirralho de 5 anos incompletos quando ela passou a levá-lo à escola. Ficava no fundo da sala brincando com a cartilha. Aprendeu a ler e escrever bem antes de ter idade para ser matriculado.
A mãe, empregada doméstica. Algumas vezes o levava ao trabalho. Darcy detestava. Preferia a escola. Porque enquanto a mãe se esfalfava na labuta de cuidar da casa, ele não podia sair da cozinha. Pelo vão da porta, espiava os filhos da patroa. Brinquedos que nem imaginava existirem. Percebia a alegria dos meninos, mas só podia espiar, proibido ir além da despensa.
A única vantagem de acompanhar a mãe era ir de ônibus. Corria para sentar no banco ao lado do motorista e o imitava na troca de marchas, no longo giro do volante. Ele se perguntava como aquele homem conseguia dominar um carro tão grande. O barulhento ronco do motor soava como música para os ouvidos de Darcy.
Quando acompanhava a avó, ainda dispunha das tardes livres para brincar com o filho do dono da venda. Soltar pandorgas, preparar armadilhas para pegar lagartos, se divertir com carrinhos de lata. Cada tarde aventura diferente.
Certa vez, o filho do dono da venda chamou Darcy para andarem de canoa. Assim como no ônibus, não saiu do lado do barqueiro, admirado com a destreza e habilidade daquele homem com o remo, com as manobras da canoa.
Nenhum passeio ou brincadeira superava a sensação de prazer que sentia com o cheirinho do pão assando. Muitas vezes ele e o amiguinho fugiam para os fundos da padaria para apreciar o padeiro. O avental enorme, o chapéu branco na cabeça, a poeira da farinha, ele batendo a massa. Na imaginação de Darcy, as mãos do padeiro criavam o cheiro mais delicioso do mundo.
Desejava ardentemente aquele pão. Mas estava muito distante dele. O Pão do Ribeirão era um dos mais caros da cidade. Nem a avó, muito menos a mãe, poderiam comprar. Darcy recorda, em raras oportunidades, um aniversário ou visita importante, a avó cometia a extravagância de comprar o pão mais gostoso da cidade.
Adulto, permaneciam na memória as aventuras, a admiração e o cheirinho do Pão do Ribeirão. Tornaram-se fonte de inspiração.
Anos depois, cineasta celebrado, foi convidado a palestrar sobre processo criativo. Ao final, alguém do auditório quis saber quais heróis povoavam a infância de Darcy, em quem ele se inspirava para conceber os filmes.
Darcy respirou fundo, pediu um copo d’água, aguardou alguns segundos na tentativa de segurar as lágrimas.
— Meus heróis são sábios e super poderosos, controlam as máquinas, seduzem os elementos, andam sobre as águas.
Com domínio da respiração, usou o silêncio para deixar a imaginação da plateia ser ocupada pelos heróis de ficção.
Passado breve tempo, continuou.
— Devo tudo o que sou às mulheres que me criaram e aos meus heróis, o padeiro, o barqueiro, o motorista, e todos os trabalhadores de nossos dia-a-dia. O cheirinho do Pão do Ribeirão ainda me desperta e guarda em mim aquele menino sonhador que se deleitava com o aroma e insistia em ficar mais um pouco na cama da mãe antes da avó insistir para ele levantar.
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