Paralelas
(Delman Ferreira)
Clínica e
Maternidade Espaço Amarilis da Mulher. Assistida por equipe especializada
em parto humanizado, no dia 4 de dezembro de 2025, às 10 horas e 23
minutos, nasce Maria.
Hospital
Universitário. Assistida por plantonistas, no dia 4 de dezembro de 2025, às 10
horas e 23 minutos, nasce Maria.
Alameda Beira
Mar. Quarto de bebê preparado com esmero ao longo de meses revela, em
cada detalhe, o carinho e a expectativa pela chegada de Maria. Ambiente limpo e
harmonioso, como se estivesse suspenso no tempo, aguarda o primeiro choro, o
primeiro suspiro, o primeiro olhar de quem já é amada muito antes de chegar.
Dois
quilômetros acima, altos da Ladeira do Antão. Casebre pequeno — um cômodo
dividido por lençóis amarrados em fios — aguarda Maria. O chão é de cimento
batido, as paredes mostram sinais do tempo, com pintura manchada pela umidade.
Uma caixa de madeira será o berço de Maria.
Maria da
Alameda é filha de família estruturada. O pai, funcionário público de
carreira, garante um cotidiano de previsibilidade, estabilidade e segurança. A
mãe tomou a decisão de se afastar do trabalho meses antes do nascimento de
Maria — escolha pensada e planejada.
Maria da
Ladeira, nasceu numa família em eterna luta para se estruturar. O pai,
desempregado durante quase três anos, há pouco conseguiu emprego de repositor
em supermercado. Salário mínimo. A mãe, incansável, trabalha como diarista.
Acorda antes do sol para enfrentar ônibus lotados e encarar casas alheias com
vassoura, pano e coragem. Não tem carteira assinada, nem férias, nem
garantia de trabalho na próxima semana.
Maria da
Alameda conviverá com avós, tios, tias e primos. Os avós estarão sempre
presentes em todos os momentos corriqueiros ou especiais da vida de Maria.
Maria da
Ladeira conhecerá apenas os avós maternos. O avô vive a vida embebido em
álcool. A avó amarga toda a dificuldade decorrente. Mal conseguirá ver a neta.
Maria da
Alameda será amamentada pela mãe até os seis meses quando, então, sua nutrição
diária será acrescida de papinhas, frutinhas e outros nutrientezinhos. Cardápio
estudado, individualizado e balanceado para um perfeito desenvolvimento físico
e intelectual. Mês a mês, visitará pediatra particular e receberá todas
as vacinas nos períodos específicos.
Maria da
Ladeira será amamentada nos primeiros dias, até a mãe ser obrigada a voltar
para as faxinas diárias. Com menos de um mês de vida, passará a ser alimentada
com farinhas industrializadas. Quando conseguir marcar consulta, visitará um
posto de saúde para manter a caderneta de vacinas atualizada.
Maria, depois
dos primeiros passinhos, iniciará a vida escolar, primeiro na escolinha cuja
grade oferecerá aulinhas de música, natação, jardinagem, pintura e brincadeiras
lúdicas. Professoras e auxiliares devidamente graduados, orientadas por
Pedagoga com Mestrado em Educação Maternal. Aos dois anos passará a frequentar
aulas regulares de natação. Aos quatro começará a estudar o primeiro dos três
ou quatro idiomas que dominará.
Maria, ao longo
de seus primeiros anos de vida, será cuidada por uma tia quatro ou cinco anos
mais velha, que ficará com a menina enquanto a mãe estiver nas faxinas.
Aos cinco anos,
Maria fará sua primeira viagem internacional, à Disney. Aos oito, dez dias
entre Londres e Paris. Aos treze anos, nas férias, sua segunda viagem à
Europa. Um mês em Portugal, Espanha, Itália e Grécia. Entre uma viagem
internacional e outra, visitará as principais cidades, serras e praias do
Brasil. Aos 15 anos, já conhecerá largamente sobre vidas e obras dos principais
artistas e personagens da história ocidental por ter estudado e visitado os
locais em que viveram e atuaram.
Até os cinco
anos, Maria conhecerá a fome, algumas cozinhas e áreas de serviço de casas em
que a mãe fizer faxina, as ruelas e as invasões das vizinhanças. Num dia das
crianças, será levada ao zoológico. Um ou outro natal irá a algum shopping para
ver Papai Noel. Testemunhará o esforço árduo – e muitas vezes infrutífero
– de seus vizinhos para sobreviver. Viverá a realidade da periferia
marginalizada. O submundo do tráfico, o comércio do corpo. Conhecerá o descaso,
o abandono, a carência. Aos 13 anos, já conhecerá prazeres e agruras do
convívio íntimo com alguns dos principais mandantes de seu entorno.
Aos seis anos,
Maria será guindada a nova etapa escolar. Momento planejado pelos pais desde os
quatro. A escola será escolhida depois de um longo processo de avaliações
criteriosas. Currículo bilíngue. Condições e estruturas para Maria
experimentar e optar entre diversas atividades culturais, artísticas e
esportivas. Caso enfrente dificuldades em alguma matéria, poderá contar com
equipe de reforço escolar e os avós, sempre presentes e ávidos por
participar de sua educação.
Aos seis anos,
Maria iniciará a vida escolar, a mãe precisará enfrentar horas numa fila
interminável para conseguir vaga na escola mais perto de casa. Inicialmente,
será um pouco assustador e, ao mesmo tempo, uma grande novidade. Além da
merenda escolar de todos os dias, poderá brincar com amiguinhas novas. Maria
será muito curiosa e gostará de saber mais daquele outro mundo apenas espionado
pela tela do celular – praticamente a única janela de contato com a vida além
morro. Maria dependerá de seu próprio esforço e curiosidade para progredir. Os
pais, a avó ou a tia não terão tempo, energia ou condições para acompanhar de
perto sua vida escolar.
Maria crescerá
entre revistinhas, livros, filmes e debates acalorados sobre diferentes — por
vezes divergentes — visões de mundo.
A principal
escola de Maria será a rua.
Maria
continuará vivendo apenas algumas centenas de metros distante de Maria – sem
suas vidas se encontrarem. Em raros momentos, poderão ocorrer imperceptíveis
tangências. Eventos públicos e gratuitos para grandes multidões.
Maria, graças
aos incentivos, apoio familiar e sua sede de aprender, vai avançar na vida
escolar, até alcançar o funil do vestibular, para o qual, mesmo com a natural
insegurança diante de um novo desafio, estará muito bem orientada e capacitada.
Maria, graças à
sua vivacidade e grande esforço, vai avançar na vida escolar e alcançar o funil
do vestibular. Ficará muito insegura por não se sentir devidamente preparada.
Maria perceberá
o mundo ao seu redor. Fruto de observações através das janelas do carro do pai,
terá leve consciência de viver numa sociedade desigual e injusta.
Maria sentirá
na pele a sociedade desigual e injusta onde vive. Saberá que seu mundo é
marginalizado.
Maria sonhará
poder ajudar a construir um mundo mais justo. Por viver numa cidade que respira
natureza, pensará ser urbanista. Projetar locais e casas aconchegantes, com
maior dignidade, nas quais seja agradável viver e conviver.
Maria imaginará
casas e comunidades capazes de ajudar a integrar as pessoas entre si e com a
natureza. Ao invés de fronteiras divisórias, que sejam espaços de comunicação e
aproximação.
Maria e Maria
sonharão o mesmo sonho: estudar Arquitetura e Urbanismo.
Para Maria, uma
certeza: caso não consiga passar no vestibular da Universidade Federal,
poderá fazer Arquitetura em outra universidade privada de boa qualidade.
Para Maria, uma
certeza: caso não consiga entrar na Universidade Federal na primeira
tentativa, não haverá outra oportunidade.
Que sorte
espera Maria?
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