Crochê, macramé e paixões

(Delman Ferreira)
Quando se viram pela última vez, urravam e tentavam arrancar os olhos um do outro.
— Fascista!
— Comunista!

Trinta anos depois, por acaso — ou castigo — entraram no mesmo bar. Entreolharam-se ressabiados, com a timidez de quem já foi inimigo e agora se sente ridículo por isso. Por fim, um chamou o outro para sentarem juntos. Afinal, já faziam trinta anos. Trinta.
— Como vai? — pra cá.
— O que tem feito? — pra lá.

Bateram os copos. Sacudiram o gelo. Engoliram o orgulho. Foram quebrando o sem jeito. Vieram as preliminares.
— Quanto tempo!
— Pois é, quanto tempo!
— O que você faz agora?
— Professor. História.
— Tá brincando… Eu também sou professor! Economia. No IF lá da Palhoça.
'Xpressionante! Hahaha!

Risos. Mais uma rodada.
— Você casou?
— Casei. Separei.
— Jura? Eu também! Cinco anos já.
— A vida, né… pelo menos mantenho boa relação com a ex.
— Eu também! Tô sempre com os filhos. Já tenho até netos!
— Eu também!
Curtiram as fotos dos netos.

— Amigo! Desce mais duas.
— E sua mãe?
— Tá com Alzheimer. Já nem me reconhece.
— É complicado! A gente vira pai dos próprios pais.
— Pior que é.
— A minha já partiu.
— Meus sentimentos!
Suspiraram juntos.

— Ainda toca violão?
— Não. Mas comecei a fazer crochê na pandemia. Faço cachecol pra todo mundo no Natal.
— Crochê?! Eu faço macramé. Vivo fazendo cestinhas pra vasos.
— Hahaha! Dois revolucionários de agulha e linha!

Encheram os copos de novo.
— Você vem sempre aqui?
— Vez ou outra, desde o ano passado.
— Mentira. Eu também. Sempre fico nessa mesma mesa.
— A gente se esbarrou esse tempo todo e nem sabia!

Olharam-se nos olhos. Riram. Brindaram.
— Cara, eu acho que já tinha te visto… uns anos atrás, na fila da Caixa, com uma camisa do Metallica.
— Cê tá brincando! Era eu mesmo. E você tava com uma camiseta da Legião!
— Eu ia puxar papo… mas achei que tava maluco.

— Ei, Walter, desce mais duas pra gente.
Já estavam na fase do abraço de lado e das confidências:
— Você ainda acredita naquelas coisas?
— Que coisas?
— Aquelas que você pregava. Dos vermelhos.
— Ah… me desiludi. Já não milito mais como antes. Sabe como é, aquela energia e revolta era coisa da juventude. A idade vai chegando e a gente vai vendo o mundo de outro jeito.
— Sei bem.
— E você? Ainda acredita que os ricos vão salvar o país?
— Hahaha! Boa piada. Esses filhosdaputa só pensam neles. Usam a gente como massa de manobra.

Silêncio breve. Sincero.
Mais uma. Brindaram de novo.
— Meu irmão… como é que a gente ficou tanto tempo longe um do outro?
— Também não me conformo!
— Sábado, lá em casa. Vamos recuperar o tempo perdido. A Júlia vai adorar te rever.
— Júlia? A minha Júlia? 
— A própria!

Passaram o sábado a jogar conversa fora como se o tempo tivesse congelado em 1995. Filhos e netos feitos de plateia, rindo meio sem graça dos feitos e malfeitos da juventude.
— Lembra do Sabão, liso que nem bagre? 
— Sim, até hoje não sei como ele escapou na cara do delegado!
Ainda guardavam os mesmos discos. Cantaram Belchior, Raul Seixas, Pra não dizer que não falei de flores.

Riram. Choraram. Brindaram. Amizade eterna.
Até um convidar o outro para o jogo de domingo.
Descobriram, sem querer, o impensável.
— Como assim tu és Figueirense?
— Como assim tu és Avaí?
— Isso eu não engulo! — urraram em uníssono, já levantando da cadeira.

— Alguém separe, por favor! Eles vão acabar arrancando os olhos um do outro!

—  De novo... não! — suspirou Júlia.

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