Manda quem pode, obedece quem tem juízo

(Delman Ferreira)

Cláudio, meu amigo soteropolitano, volta e meia conta histórias da Bahia que flertam com o realismo fantástico.

Tragédia de proporções bíblicas. Incêndio na fábrica de explosivos. Estrondo tão forte que até os defuntos tremeram. Incontáveis feridos. Uma centena de mortos.

Não havia hospital. Nenhum transporte capaz de levar tanta gente até outros centros.

Ninguém sabia o que fazer. Perdeu-se o controle por completo. Suando frio, bigode retorcido, o despreparado prefeito, espremia a cabeça tentando lembrar de alguém para controlar a situação.

— Sargento Trovão! — soprou uma voz — Ele vai dar um jeito.

Naquela região, Trovão era um gigante. O mais alto da cidade, negro, braços e pernas como troncos. Na verdade, nunca foi militar, nem sargento, nem recruta — escapou do quartel por graça do pé-chato. Ganhou o apelido pela voz tonitruante e a forma autoritária de se expressar. Sempre dando ordens, sempre trovejando. Não admitia ser questionado. 

— Não me venham com detalhes. Ele é forte como um touro, está acostumado a dar ordens, vai controlar todo mundo — respondeu o prefeito quando o avisaram da falta de patente do “Sargento”. 

Trovão recebeu carta branca para agir.

Convocou toda a cidade. Providenciou colchões e lençóis para os feridos. Chamou as mulheres e mandou prestarem os primeiros socorros até a chegada de ajuda.

Mas… e os mortos?

Não havia IML, nem onde acomodar tantos corpos até serem identificados. 

— Seu Prefeito, morreu gente demais!

— E daí? Eu sou coveiro, por acaso? 

Mas com Trovão não havia problema sem solução. Deu ordem aos homens para limparem um galpão.

Espaço modesto, não comportava todos os mortos. Mas nada impedia Trovão, mandou colocá-los uns sobre os outros.

— Os de cujus não vão reclamar — respondia a quem estranhava a ordem.

Tudo organizado. As pessoas, mesmo chocadas e traumatizadas, faziam todo o esforço para ajudar. As mulheres cuidavam dos feridos, os homens colocavam os mortos em ordem unida. 

Pequenininho do Pão, frágil, físico oposto ao de Trovão, já passava da meia-idade. Entregava pães de casa em casa com sua carrocinha todos os dias. Decidiu se apresentar como voluntário.

Trovão olhou de esguelha e determinou:

— Vá para o galpão cuidar dos mortos. 

Diante das pilhas de corpos, Pequenininho não resistiu. A visão nublou. Sentiu o mundo rodar. Estatelou-se desmaiado.

Na confusão, ninguém percebeu. Era mais um corpo caído. Jogaram no monte. Logo, outro corpo, morto de fato, foi colocado por cima. 

Passado um tempo, Pequenininho acordou debaixo de uma pilha.  Dois olhos arregalados o espiavam. Mão gelada tocando seu rosto. Deu um salto. Corpos rolaram no chão. 

Tensão. Medo. Até os valentes balançaram. Voz congelada na garganta. Os segundos se arrastaram estupefatos até alguém gaguejar.

— Vaaa…lei-me, Mãe de Deus!

— Esconjuro! É assombração! — balbuciou outra voz.

— Vixi! Os mortos se arrenegaram. Também,  onde já se viu empilhar defunto? 

Pânico. Caos. Gente xingando, rezando, exorcizando demônios. Outros a falar mal do Prefeito, do Sargento, do Padre, do Pastor, até do dono da venda.

Trovão logo percebeu a origem da confusão. Com o vozeirão de comando, buscou retomar o controle:

— Pequenininho, volte já pra pilha.

Num fio de voz, o padeiro ainda tentou argumentar:

— Mas, Comandante, eu tô vivo. Olha eu aqui, vivinho, inteirinho.

Trovão não vacilou. Respirou fundo. Passos largos, foi até Pequenininho.  Pegou-o no colo. Ergueu acima dos ombros. Atirou na pilha mais próxima e trovejou:

— Pequenininho do Pão! Não interessa se você está vivo. Volte já pra pilha. Você morreu!!!


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