Cheiro de sonho
— Se aquele guarda não me segurasse, eu tinha pulado daquela pedra — vangloriava-se um dos guris.
Clarinha, ainda um tanto assustada, contava como quase foi levada por uma onda.
Meninas e meninos falavam alto, riam, trocavam fotos. Imitavam mergulhos no mar, descreviam as ondas, o vento, a areia, os siris. A praia da Joaquina era um mundo encantado na Ilha da Magia.
Vevê observava de longe, encostado num canto do pátio da escola, olhos baixos, boca cerrada, lutando para não deixar escapar a frustração. Ele não foi no passeio do colégio. Os outros tinham conchinhas, ele, calos.
— Não tenho dinheiro pra pagar excursão nenhuma — o pai foi definitivo, não houve jeito. — Além disso, tem as galinhas, os porcos, a vaca prenha. Eu preciso de você aqui.
Não discutiu, jamais discutia. Mas, por dentro, não havia como segurar o ressentimento. Enquanto os outros narravam aventuras ensolaradas, Vevê lembrava o cheiro do curral, o balde pesado com água, o mugido da vaca. Olhos atentos, força nos braços, cheiro de trabalho. Era o único mundo conhecido. Mas, naquele momento, parecia pequeno demais.
O sentimento de exclusão apertava o peito. Ele fingia não ligar, não ouvir as conversas animadas sobre a praia, os mergulhos, o gosto da água salgada, mas cada gargalhada dos colegas era um lembrete cruel. Ele não esteve lá! No fundo, sentia-se diferente, menor, quase invisível. Era como se vivesse em um mundo paralelo. Enquanto os outros alunos colecionavam lembranças leves, ele acumulava responsabilidades pesadas.
Essa diferença, antes despercebida, agora o feria. A exclusão não era só da excursão, mas de um jeito de viver. Era como se o mar tivesse lavado os pés de todos, menos os dele, presos ao barro do sítio. Para piorar, ele perdeu de conhecer a Joaquina.
Vevê amava o pai. Um amor embotado, mistura de admiração, medo e silêncio. O velho Amâncio era homem de poucas palavras, mãos calejadas e olhar mais aterrorizante que sermão de missa. Amor sem abraço. Gestos duros, ensinamentos não ditos. Trabalhava de sol a sol no sítio, e esperava o mesmo do filho. Carregar baldes e capinar mato era o destino natural de quem nascia naquele pedaço de chão. Vevê não ousava contestar. Essa era a vontade de Deus, lhe disseram desde pequeno.
Até aquele dia, quando os colegas voltaram falando da Joaquina. Enraizaram-se no peito a paixão e a determinação de conhecer o mar. Não um mar qualquer, queria Joaquina, cheia de magia e de infância perdida. Não morreria sem conquistar Joaquina.
Vevê cresceu, casou-se com uma prima. Seis filhos. Mas a paixão jamais o abandonou. Pelo contrário, desenvolveu-se como árvore frondosa dentro do peito. Nunca esqueceu aquele dia quando ficou encostado no pátio, ouvindo histórias de mar enquanto suas mãos cheiravam a curral.
Viveu a vida herdada do pai.
Idade chegando, Vevê passou a sentir cansaço em tarefas rotineiras. Qualquer esforço, um desafio. Pela primeira vez na vida a esposa conseguiu convencê-lo a se consultar. Depois de falar linguagem de médico, o doutor decidiu traduzir para Vevê compreender a gravidade da situação:
— O senhor tem um entupimento nas veias do coração. Isso se chama coágulo. É como se fosse uma pedra no meio do rio atrapalhando o correr da água. O problema é que essa pedrinha, esse coágulo, pode sair daí do coração e ir parar na cabeça. Se isso acontecer, o senhor vai ter um AVC. É um derrame. Pode morrer ou ficar paralisado para sempre de um lado do corpo.
Experiente, o médico tratou de assustar Vevê para convencê-lo a tomar os cuidados necessários.
— Vou passar a receita de uns remédios. O senhor deve tomar direitinho, na hora certa, sem falhar. Além disso, evitar de fazer esforço. Não pode mais sair pelo sítio correndo atrás dos bichos, arrumando cerca, podando árvores. Daqui pra frente, só repouso, nada de esforços. Tá na hora de descansar, seu Vevê.
Ouviu o diagnóstico em silêncio. Lembrou das vacas ruminando, olhar parado no nada. O médico falava em repouso absoluto, risco de vida, derrame. Vevê pensava no sonho de conhecer Joaquina. Se o coração estava querendo parar, então era hora de fazer o que já devia ter feito há muito tempo.
Jamais havia se distanciado de Trombudo Central. Mas não houve dúvidas, no sábado seguinte, acordou decidido.
— Vou até a Joaquina — a esposa achou graça, mas não se opôs.
Em poucos dias, Vevê embarcou. Dezoito horas de estrada, pinga-pinga interminável. Dormiu mal, mas sonhou bem. Desceu na rodoviária de Florianópolis sem saber como encontrar a Joaquina.
O coração quase parou quando o ônibus embicou no alto do morro, ao lado das dunas. Vevê viu as ondas quebrando nas pedras. O mar verde-azul não cabia nos olhos.
Desceu a pequena escada. Antes de pisar a areia, tirou os sapatos, dobrou a barra da calça até o meio da canela, respirou fundo. No primeiro impacto, incomodou-se com a maresia, não estava acostumado ao cheiro de peixe.
Andou devagar. Cada passo uma rebeldia contra o diagnóstico, contra o pai, contra o destino. Parou. Os pés afundaram no ir e vir das ondas. Não lembrava de alguma vez na vida ter sentido tal prazer, tanta maciez. Enfim, a realização do sonho. Um ato de liberdade, desobediência, afirmação da própria vontade.
O vento abrandava o calor na pele enrugada. Lágrimas escorriam na face marcada pelo sol da roça. Ele ria, ria. Ria como nunca. Sentiu o peito abrir, libertava-se dos medos. Perdeu a noção do tempo.
Não fez fotos, não mandou mensagens, não avisou ninguém. Só ficou. Respirava fundo, queria guardar aquele cheiro para sempre. O mar dizia coisas que ele não era capaz de pensar. No lugar do coágulo, fluia Joaquina.
Vevê voltou àquele velho pátio da escola. Agora, ele também tinha um mar todo seu e um coração desimpedido.
Que lindo conto! A emoção dele senti quase como minha, com muita intensidade
ResponderExcluirMuito bom!
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