Bigode e artesão

(Delman Ferreira)

Vaidoso, Manoel Cândido cultuava os bigodes como quem cuida de uma delicada e rara orquídea. Jamais um fio fora de ordem, alinhamento militar, harmonia musical, lado esquerdo e lado direito espelhos um do outro. Obra de arte.

Nem o próprio Manoel ousava tocar. Uma única pessoa no mundo estava autorizada a retocar e modelar. O barbeiro Porfírio cuidava dos bigodes de Cândido como um artesão no domínio de seu ofício, um mestre perseguindo a perfeição.

Naquela manhã de segunda-feira, como repetia todos os dias, Manoel investigou-se diante do espelho, mirou de um lado, de outro, distanciou, aproximou. Admirou o bigode. Mas uma ruga de incômodo marcou a meditação. Percebeu um fio, uma ameaça rebelde a levantar-se contra a ordem unida. Nem pestanejou, decidiu imediatamente. Antes de qualquer outra providência, passaria no Porfírio.

Abriu as janelas, olhou o horizonte, sondou o céu para ver a disposição das nuvens. Precisaria casaco? Guarda-chuva? Desceu para a Praça da República, seguiu até a Rua Marquês Trogílio Vergalho, e entrou pela porta entreaberta da Barbearia Pacífico. No caminho, passou em frente ao Bar e Café Pretinho, onde batia ponto todas as manhãs. Pensou parar, tomar um purinho e trocar dois dedos de prosa com outros habitués. Mas não, a missão mais séria do dia era entregar seu bigode às artes de Porfírio. Nenhuma semana começaria bem se o bigode estivesse desalinhado.

Porfírio herdou do pai a profissão, a barbearia, a clientela e a paixão pelo Salão Pacífico. Decidiu manter o mesmo ambiente, inclusive alguns rituais. Chão de ladrilhos alternados em pretos e brancos, azulejos portugueses nas paredes, bancos de espera, espelhos grandes diante dos clientes. Cadeiras reclináveis originais da década de 1950, dispostas em posição tal que o ocupante poderia perceber todo o movimento da sala. Máquinas e técnicas modernas conviviam com rituais, navalhas, cremes e loções, testemunhas de gerações. Um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar. 

Com a onda vintage, a clientela crescia dia a dia, a ponto de obrigá-lo a contratar ajudantes. Porfírio dedicava-se a atender a clientela antiga, de quem conhecia cada uma das manias e vaidades. 

Manoel encontrou o barbeiro em pé, frente ao balcão onde guardava seus apetrechos. Numa tira de couro polido, em vaivém ritmado, apurava o fio da navalha. A barbearia era um reduto de homens, onde se encontravam para trocar ideias, falar de futebol, política, rir, falar alto e mentir. Ali, naquele templo de paz, filosofavam e sabiam de tudo.

Por ordem de chegada, Porfírio chamou Manoel. Nesse instante, a harmonia foi dilacerada pela voz tonitruante de um desconhecido. Vociferava. Violento, ameaçador. Palavrões aos borbotões.

— Ei, você não me viu aqui aguardando? Como ousa atender um negro na minha frente? Não vou admitir, jamais, esperar por um negro. Ainda mais um negro com cara de viado!

Porfírio, calmamente, virou-se para o balcão, depositou a navalha, abriu uma gaveta, pegou um chicote de couro cru trançado. Ainda com toda a calma e pleno domínio de si, dirigiu-se até o importuno. Não proferiu qualquer palavra, não demonstrou emoção, apenas chicoteou e... chicoteou. 

Esbaforido, o valentão saiu em disparada. Serenamente, Porfírio guardou o chicote. Trocou por navalha, pente, e tesoura. Voltou a concentrar toda a atenção em Manoel. Apenas um pequeno comentário.

Fiquei preocupado que a gritaria pudesse incomodar o amigo e ameaçar nossa obra.

Os dois se olharam por um instante. Manoel tentou segurar um riso incontrolável. A tentativa frustrada contagiou Porfírio.

Ninguém na barbearia segurou a gargalhada escancarada.


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