Gaiola dourada, bola murcha, riso solto

(Delman Ferreira)

Joaquim Carneiro Leão de Oliveira e Silva cresceu cercado de ouro. Nada lhe faltava. Tudo parecia existir apenas para ele. Havia um exército de servidores sempre prontos a satisfazer qualquer capricho. Babás, motoristas, professores, nutricionistas, terapeutas - profissionais à disposição 24 horas por dia. Carros blindados. Clubes privados. Mundo inexpugnável. 

Aos treze anos, o vazio. Passou a sentir como se nada fosse natural ao seu redor. Os sorrisos eram mecânicos, os sentimentos coreografados, carinhos agendados. Palavras submissas, olhares subservientes.

— Muito bem, senhor Joaquim, o senhor nunca deixa de nos surpreender. Cada pincelada contém leveza e profundidade — os elogios soavam sem vida, sem emoção, como flores de plástico.

Não conhecia o peso da espera, o susto da perda, a decepção da negativa, o esforço da conquista. Ao sinal mais imperceptível, seus desejos eram satisfeitos. Negaram-lhe a dor, a frustração, a incerteza. 

Descobriu a dor de não sentir dor.  

Certa vez, ao tentar escrever uma redação relatando um momento marcante, travou. Buscou, na memória, algum imprevisto. Nada. Nenhuma cicatriz. Nenhuma queda. Nenhuma despedida. Sentiu-se oco, artificial. Decidiu inventar uma desventura na fazenda, imaginou-se picado por abelhas. Mas não sabia como expressar tal experiência jamais vivida.

Dentro dele, brotou um desconforto desconhecido. Não sabia o quê, nem porquê. Sede insaciável. Nem os mais refinados doces satisfaziam à fome desconhecida. Frio sem agasalho. Inquietação sem fim.

Aos dezesseis anos, a epifania. Voltava da aula particular, o motorista precisou fazer um trajeto inesperado, breve desvio da rota habitual. Joaquim deveria aguardar em segurança, oculto pelos vidros escuros do carro. Entretanto, curioso, abriu a porta e decidiu arriscar alguns passos na rua. Animado com a inédita aventura, sem notar, afastou-se além do imaginado. A curiosidade o levou até uma viela onde um grupo de meninas e meninos jogava futebol. Descalços, seminus, sobre a terra batida.

A viela exalava o cheiro quente da terra e do suor. Risadas, gritos, xingamentos, comandos improvisados, o som rouco da bola chutada - tudo tão diferente do silêncio asséptico de seu mundo blindado.

Ficou estático. Olhos arregalados, imóvel, mal respirando. Tudo parecia inacreditável. Nenhum adulto supervisionando. Nenhuma segurança. Sem câmaras. Sem alarmes. Sem grades protetoras. Riam com os dentes tortos e os pés feridos. A bola furada voava entre corpos magros. Sentiu a vibração. Uma alegria estranha, desconhecida, viva, espontânea, verdadeira.

Dois meninos, sujos e ofegantes, no calor da disputa, chegaram próximos. Como se tentasse um minuto de descanso, a bola esquálida fugiu na direção de Joaquim.

— Manda aí, campeão! Chuta pra cá! — gritaram os meninos, sem o chamar de senhor. Apenas pedindo para devolver, na maior sem-cerimônia.

Joaquim hesitou. Pegou a bola. Sentiu a textura da costura rasgada sob os dedos. Uma emoção surda o invadiu. Aquela bola velha, murcha e suja continha mais vida do que todos os brinquedos importados que nunca lhe disseram nada.

— Ô, Zé Mané, não empata, joga logo essa bola! — gritou outro menino - ou talvez fosse uma menina,  ele não saberia dizer - impaciente com a demora.

Ali, diante da simplicidade crua, do suor e da liberdade sem cuidados, foi como se enxergasse pela primeira vez. Sempre vivera preso num cenário de vitrine, uma gaiola disfarçada, blindado contra o mundo real. Segurando a bola suja e feia, ele percebeu: viver era isso. Corrido, suado, ferido. Feliz.

Deixou-se rir. Um riso inseguro, imperfeito - mas seu, todo seu. Profundo. Nascido lá do fundo da alma.

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