Cabeça de porongo

(Delman Ferreira) 

        Ademir trouxe as frutas e verduras para Dona Gertrudes. Como fazia toda semana, ela lhe ofereceu um pão e um copo de café. Enquanto aguardava na porta da cozinha, ele ficou observando o quintal. Outros meninos da mesma idade jogavam futebol. 

O olhar ficou preso na bola rolando no chão batido. Aos poucos, a imaginação voou. Ademir não era mais um entregador de verduras de 11 anos. Era Ronaldinho. 

Prepara-se para bater uma falta. A torcida faz tremer o estádio. O goleiro apronta a barreira. Ele ajeita a bola. Olhos nos olhos da defesa. Observa o canto superior da trave. Calcula a posição do sol. A direção do vento. Conta passos para trás. O juiz apita. Como mágica, o silêncio toma conta do estádio. Ninguém ousa nem respirar. Ele avança como uma onça. Chuta alto. A bola sobe em direção ao céu. Enfeitiçada, desce de repente. No ângulo. Contrapé do goleiro. Impossível alcançar. A torcida explode como se o mundo fosse apenas aquele momento mágico.

— Pobre goleiro! — Ademir comemora com um sorriso sonhador.

Um melão escorrega da pilha de frutas e se parte no chão.

— Menino! Ô, menino, onde estás com essa cabeça de porongo? Tentando chutar o melão? Presta atenção no que fazes, deixa o jogo e vem me ajudar a descarregar essa caixa de verduras.

Ademir suspira.

Na volta para o sítio, deixa a desengonçada carroça seguir no passo de Canjica. O pangaré conhece cada desvio, cada buraco, cada árvore. Hoje, puxa verdura, mas, se lembrasse, teria orgulho dos tempos de glória, quando levava Dona Rosário para fazer partos em todos os sítios da região. Passo desajeitado de Canjica. Rangir da carroça. Cheiro de pasto. Enquanto a vida se arrasta pela trilha, Ademir vai mergulhado nos próprios devaneios.  A melancolia se instala no coração.

Quando chega no sítio, vai direto para a cozinha. 

— Mãe, eu não sirvo para nada. Por que é que eu não sirvo para nada?

Dona Rosário, sem entender direito aquele rompante, enxugou as mãos no avental, puxou uma cadeira e abraçou o filho. A vozinha triste fez a mãe estreitá-lo nos braços como quem ampara um bebê tentando dar os primeiros passos.

— De onde você tirou essa ideia? Você planta batatas, milho, tomates, verduras. Colhe. Leva nas casas. Vende na feira. Cuida das galinhas, dos porcos, das vacas. Remenda as cercas. Não serve para nada? Você já é capaz de fazer qualquer coisa como se fosse homem feito. Serve pra tudo.

— É… mas não sirvo pra jogar futebol. Não sirvo pra correr, nadar, pescar, passear de carro. Não sirvo pra brincar. Não sirvo nem pra ir à escola.

No canto da cozinha, jaz uma bola vazia, desencantada, como um sonho murcho.


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