Alfinete

 (Delman Ferreira)

Alfinete não era um simples jogador. Chamá-lo de artista também não dava a dimensão de sua capacidade de enlear e atordoar os adversários, encantar a torcida, mesmo os contrários, ou fazer jogadas desafiando a ciência. Meio-campista refinado, cerebral, elegante, cabeça erguida, peito aberto, olhos antevendo o pensamento do adversário. A bola, acariciada, compreendia e cumpria seus comandos com prazer e fervor.

— Alfinete, quantas vezes já te disse, corre, penetra pela direita! — Técnicos desesperados perdiam a voz tentando fazê-lo correr atrás da bola.

— Mas, Professor, quem precisa correr é a bola e ela vai onde eu quero.

Passes curtos e rápidos. Ou cruzamentos longos, através de campos e tempos. Sabia onde estariam os colegas, antecipava, colocava a bola como um míssil, no ponto exato para o companheiro explodir rumo ao gol.

— Então, se era tão bom, onde foi parar? Porque nunca se ouviu falar dele?

— Ah! Temos aí mais uma das tantas histórias de profecias atropeladas pela esperteza.

Ainda menino, Alfinete já era famoso na cidade. Nos campeonatos da várzea, o time dele já largava com a mão na taça. Não demorou para surgir um enxame de olheiros prometendo mundos e fundos para o pai de Alfinete.

Um desses olheiros, mais ligeiro, levou a família para passar um final de semana em sua fazenda. Encheu a cabeça do pai do menino de sonhos. Fama, mansões, carros de luxo. Seduzido, Vicente nem consultou o filho. Saíram de lá com contrato de exclusividade assinado. O olheiro com poderes para decidir a vida de Alfinete.

Em troca da assinatura, uma casa nova, mobiliada com todos os aparelhos das propagandas de TV.

— Isso a gente nem sonhava. O senhor faz milagres, é um santo para nós.

— Não, Dona Margarida, quem faz milagres é seu filho com a bola nos pés.

Alfinete passou na primeira peneira. Foi para a cidade grande. Longe de casa, longe dos pais, dos irmãos, dos amigos. Passaram-se meses. Vivia em alojamento improvisado no Centro de Treinamento, montado debaixo das arquibancadas. 

Dona Margarida decidiu fazer uma visita — e ficou assustada. Encontrou um sorriso cabisbaixo, olhar esgazeado, sem viço. Não reconheceu o filho naquele rapaz desiludido, sem esperanças.

Alfinete apenas treinava. Nada de ser escalado para participar de algum jogo importante. O medo, silencioso, começava a tomar conta. 

O pai procurou o Olheiro e quis saber por que o filho nunca jogava? Foi quando percebeu a esperteza entrar em campo.

— Olha, seu Vicente, o senhor sabe como funciona. Todo mês aparecem milhares de meninos bons de bola. Qualquer um pode ser o novo craque. Seu filho é joia rara, mas só talento não basta. É preciso agradar as pessoas certas.

Vicente ficou tonto, sem ar. Entendeu, mas não queria entender. Gaguejou:
— O… o senhor quer dizer que temos que pagar pra ele jogar?

— Não é pagar, é investir. Quando ele estourar, vai direto pra Europa. Já tenho contatos. O senhor imagine a felicidade de Dona Margarida tirando fotos na Torre de Paris?

— Quanto seria?

— Olha, gosto muito da sua família. Quero ver vocês felizes. Pensei num valor simbólico: cinquenta mil reais.

— Cinquenta mil?! Nem em toda a vida junto esse dinheiro.

— Pensa bem, seu Vicente. Amigos ajudam, parentes ajudam. Em dois, três anos, vocês vão ter mais dinheiro do que jamais imaginaram.

E assim, a carreira de Alfinete esbarrou na esperteza. Preso a um contrato que nunca o deixou jogar, foi ficando esquecido, como tantos outros. O menino que fazia a bola correr leve como o vento acabou atravessado pelo próprio apelido, preso na ponta aguda da esperteza.


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