Sonhar com zebra da jacaré da boca grande

 (Delman Ferreira)

Depois do futebol das quartas, entre caixas de cerveja e arroubos de teorias conspiratórias, a resenha seguia acalorada. O tema da vez era o Jogo do Bicho, assunto sagrado como discutir convocação da seleção.

— Só não joga no Bicho quem vive na ilusão de ver o salário vencer o final do mês. — afirmava Cacau com irônico ceticismo. 

— No Bicho só quem ganha é a banca, não tem jeito! — decretou Paulão, com a solenidade de quem cita um evangelho.

Ouviam-se os costumeiros jargões e havia quem jurava conhecer o tio-do-vizinho-de-um-amigo capaz de acertar toda semana.

— Aposto como tem algum jeito de ganhar da banca — rebateu Sérgio, limpando a espuma da boca com o dorso da mão. — É só programar um sistema pra driblar as regras.

Ao seu lado, Tadeu, parceiro de TI, futebol e cerveja, concordou fazendo sinal de positivo com o dedo e acenando a cabeça. Os dois trabalhavam no setor de informática de uma multinacional com quase cinco mil trabalhadores, dessas com ares de modernidade, onde o marketing manda chamar os empregados de colaboradores e afirma serem todos uma família com os mesmos objetivos. 

Inspirados por espumas de lúpulo e arrogância técnica, Sérgio e Tadeu se lançaram ao desafio: vencer a lógica da banca. Seriam os primeiros a burlar o jogo mais popular do Brasil com algoritmos e estatísticas.

Madrugadas estudando as regras, as histórias, desenvolvendo códigos, planilhas, e testes frustrados. Conseguiram algo próximo de um padrão: ganhavam por um tempo, em seguida, perdiam tudo e mais um pouco. Os bilhetes se multiplicavam nas gavetas, como promissórias esquecidas.

Apostadores frequentes, passaram a receber tratamento de pessoas importantes. O dono da banca – um senhor sempre de camisa polo com jacaré bordado – fez uma proposta: quando os jogos passassem de certo valor, teriam 20% de desconto. Uma espécie de cartão fidelidade do azar.

A dupla viu a luz. Passaram a recolher apostas dos colegas da empresa e ficavam com os 20%. Para estimular, usaram a mesma tática, quando os valores ultrapassavam certo limite, ofereciam 10% de desconto e embolsavam os outros 10%. A clientela aumentou em curva logarítmica.

Então, deu-se a grande sacada, o plano genial: os colegas faziam apostas miúdas, ninguém jogava alto, ninguém ganhava alto. Decidiram bancar e embolsar as apostas dos colegas. Se alguém, acertasse, pagariam mixaria. As apostas perigosas, com prêmio alto, eles continuariam a descarregar para a banca, como quem passa batata quente. 

A operação cresceu. O sistema de apostas foi automatizado, criptografado de ponta a ponta. Criaram o aplicativo Zoo. Viraram celebridades. Formavam-se filas para jogar nos horários de intervalo. Chegaram a se assustar com a multiplicação do faturamento.

A euforia os fazia sonhar com animais majestosos, emplumados, poderosos. Eram os reis dos bichos.

O robô estatístico não sabia, mas entre centavos e planilhas, os palpites não eram só números. Era o nascimento de um neto, o cachorro perdido, o passarinho na sacada. A placa do carro batido, as mirabolantes interpretações de sonhos esquisitos. Presságios, culpas, desejos — cada aposta era uma tentativa de decifrar a própria vida em forma de bicho.

Até a manhã quando foram chamados pela diretoria.

— Senhores, bom dia. Sentem-se.

Saudava-os o diretor amigo de fazer fezinhas todas as semanas. Tadeu lembrou da alegria dele quando acertou um terno, Cobra, Carneiro e Leão. 

— Tadeu, sonhar com zebra dá jacaré? — brincou o diretor com sorriso irônico.

Ao lado do diretor, o dono da camisa polo. Agora com um leve sorriso de canto. Pela cabeça de Sérgio passou a imagem de um urso. No mesmo instante, Tadeu pensou jogar na cobra.

— Quero apresentar a vocês o primo em primeiro grau do presidente da empresa — apontou o diretor.

O homem da camisa de jacaré ergueu a sobrancelha, satisfeito.

— Viemos agradecer. O movimento cresceu, o faturamento multiplicou. Bonito o esquema bolado por vocês. Foi divertido ver até onde iam chegar. Mas agora, passaram do ponto, viraram concorrência. E a banca, meus amigos, a banca não aceita concorrência.

Sérgio tentou argumentar. Tadeu gaguejou algo sobre parcerias.

— Parceria? — interrompeu o primo-banqueiro — Eis nossa proposta de parceria: vocês vão continuar operando... para mim. Agora, nós ficamos com os lucros. Vocês ficam com o trabalho. E, claro, com a responsabilidade, se der algum problema. Mas não se preocupem, serão remunerados. De tempos em tempos, acertarão um milhar invertido na cabeça. 

— E se a gente recusar?

O homem da camisa bordada apenas sorriu.

Sonharam com leão, mas naquele dia deu zebra, prima próxima dos espertos.

Continuam acreditando ser possível virar o jogo. 

— É só ajustar umas linhas no código — ainda sonham, como se o robô pudesse vencer o jacaré.

Comentários

  1. Gostei. Mais uma vez a linguagem está perfeita. Sem excessos. Mais um parabéns, meu amigo.

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  2. O bom humor, com uma pitada interessante de ironia.

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  3. Bem delineado a lógica que evolvem essas tretas de bicho, pirâmide e congêneres… só dá pro jacaré, rsrs

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