Francês de estimação

(Delman Ferreira) 

Não atendia aos padrões comerciais de beleza masculina, mas o forte sotaque afrancesado o cobria com charme irresistível e se impunha sobre qualquer outro quesito.

Dizia ser proveniente da pequena cidade de Metz, no nordeste da França. 

    — A região ainda guarda traços de colonização romana. Encravada entre Alemanha, Bélgica e Luxemburgo, uma encruzilhada de culturas refinadas — gostava de dizer com sotaque cheio de biquinhos e acentuação nos finais das palavras.

Ninguém sabia direito onde ficava Metz, mas soava tão francês quanto chique. Jean Pierre, com cachecóis leves no pescoço e sotaque cativante, aparecera como quem vinha de um mundo superior. Chegava aos lugares com passos suaves e elegância estudada. Ainda não alcançara os trinta anos, mas já se dizia experiente em gastronomia, política europeia, filosofia existencialista e vinhos. Não raro confundia Sartre com Voltaire, ou citava memes de internet como se fossem pura Simone de Beauvoir, mas a deslumbrada elite très chic nem percebia.

Camisas de linho, echarpe no pescoço, olhar grave e vocabulário de vinhedo, terroir, millésime, c’est magnifique. Falava com paixão de torcedor fanático pelo Football Club de Metz.

    Estivemos quarenta anos na primeira divisão do futebol francês. Sofremos alguns reveses, mas agora estamos de volta.

A alta roda da ilha, sempre ávida por exotismos, caiu de amores por Jean Pierre. Famílias o disputavam para exibir em seus jantares. Mães ansiosas por um genro francês lhe confiavam as filhas. Logo passou a circular entre empresários, sommeliers, curadores de arte. Um vereador, com voz empostada, o apresentou como o futuro da economia criativa na região. Em pouco tempo, foi alçado a sócio em uma startup de vinhos artesanais, onde seu único papel era comparecer às degustações e falar c’est magnifique com o nariz empinado.

Perspicaz, estudava cada família, decorava nomes, preferências e histórias. Sabia exatamente o que dizer para agradar, parecer culto sem se comprometer. Um camaleão de sotaque inventado e charme ensaiado. Pela internet, aprendia o linguajar, os trejeitos e o tempero para enfeitiçar o alto escalão do faz de conta.

Na verdade, chamava-se João. João da Costa, nascido no Brejaru, bairro de Palhoça. Cresceu em rua de barro, comendo pirão com ovo e bebendo Q'suco. Na primeira infância, entre seus três e quatro anos, a mãe trabalhou alguns meses como empregada doméstica para uma família de professores franceses. Dona Zuleide aprendeu resquícios de culinária, enquanto o menino João guardou, em cantinho inconsciente da memória, palavras e expressões como bonjour, fromage e s’il vous plaît.

O apelido Jean Pierre surgiu por acaso, quando, já adolescente, trabalhava de garçom. Uma cliente o ouviu sussurrar merci ao recolher o prato, e perguntou, encantada:

    Vous êtes français?

   Oui... de Metz — improvisou ele, engolindo seco. Não fazia ideia se Metz existia, mas o nome surgiu na boca como por encanto.

A mentira virou personagem. Passou a se vestir com roupas neutras e elegantes, usava óculos de armação fina mesmo sem precisar, falava em tons solenes e sorria pouco. Inventou ser herdeiro de um tio-avô, banqueiro aposentado e morador de Luxemburgo. Entretanto, havia disputa pela herança entre parentes distantes. Vencido o litígio, logo se tornaria milionário. Enquanto isso, vivia discretamente, esperando os trâmites legais.

O círculo e a influência cresceram, até o inconveniente passado bater à porta.

Transcorria o coquetel organizado por família influente. Dona Zuleide, contratada de última hora como reforço na cozinha, viu o filho de longe, com um cálice na mão, falando sobre vinhedos na Alsácia.

Feliz, ela chamou:

    João? Joãozinho?

Ele congelou. Sorriu amarelo.

    Maman... tás tola... ahn, ahn... — pigarreou — silenciô, s’il vous plaît

Poucos viram a cena. Alguns riram. Outros, envergonhados, se afastaram. Entretanto, num acordo tácito, uma troca de olhares, todos calaram sobre o ocorrido. Jamais admitiriam ter sido enganados por um francês de araque nascido no Brejaru. Além disso, ser próximo de um amigo francês, conhecedor de vinhos, cultura europeia e filosofia, acrescentava pontos positivos nos camarotes cheirosos.

Jean Pierre, ou melhor, João, saiu à francesa.

Desapareceu por algumas semanas. O sócio da startup de vinhos o procurou. Sem o consultor francês, a clientela havia sumido, as vendas despencaram. Jean precisava voltar. Explicariam que fora chamado às pressas a Metz por complicações com a herança.

Barba aparada no corte da moda, camisa escura, olhar penetrante, reinventou-se como Coach Cultural. Reapareceu para o lançamento de seu curso, o Método Metz, um programa de etiqueta emocional.

Um pacote de palestras elaborado por Inteligência Artificial: Chapitre I - Francês InteriorChapitre II - Charme e Elegânica; Chapitre III - Intimidade com os clássicos; Chapitre IV - O vinho e o portal; Chapitre V - Escalar a montanha Metz. Seguindo a tendência  da moda de imersões em montanhas, Metz passou a ser metáfora de escalada como símbolo de desenvolvimento e sucesso na vida.

O curso obteve aceitação imediata. De coach cultural e sommelier de vinhos franceses, saltou imediatamente para um canal como influenciador. A fina flor dos camarotes, pragmática, o acolheu de volta. O fascínio magnético de um francês charmoso e bem sucedido o blindavam contra qualquer malediência vinculada às origens.

Ao vivo, online, emocionado, anunciou o próximo passo:

    Em breve, meu primeiro livro: Metz, S’il Vous Plaît, Brejaru.

Comentários

  1. Muito bom! Vou mandar pro Phil, ele é de Metz… ou quiçá, do Brejaru.

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  2. Muito bom. Gostei demais. Texto impecável. Conto atraente. Parabéns.

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