Café preto com pão e manteiga
(Delman Ferreira)
Chegou numa terça-feira à tarde. Sem alarde, sem bagagem, sem passado. Apenas entrou e sentou-se no canto mais afastado. Aceitou o cardápio que a garçonete lhe ofereceu. Com gestos simples, escolheu dois itens, café preto e pão com manteiga. Nada disse. Serenidade que beirava o enigma. Leu os dizeres no espelho atrás do balcão: Café Fecundo, aqui se pratica a nobre arte de jogar conversa fora.
Desde então, passou a frequentar o mesmo Café, no mesmo horário. Sempre calado, lia jornais, rabiscava um caderno surrado. Se alguém o cumprimentava, sorria com aceno mínimo, educado, impenetrável. Jamais emitia uma palavra.
O silêncio travestiu-se de mistério.
— Tem um quê de artista europeu — murmurou Clara, garçonete do turno da tarde.
— Parece mais jeito de exilado, um revolucionário — arriscou Sônia, professora aposentada, certa de que o silêncio era típico de um passado político.
— Olhar de quem já sofreu por amor — sussurrou a adolescente Betina, anotando frases em seu caderno.
Os homens, por sua vez, o encaravam com respeito.
— Esse sujeito aí tem presença, liderança natural. — avaliou Fagundes, dono do Café Fecundo, ajeitando o avental.
— Aposto que já foi militar. Alto escalão. Não precisa falar, ele é.
Assim nasceu o mito. O silêncio despertava curiosidades, desejos, temores, admiração.
Os dias se transformaram em semanas. Mantinha-se compenetrado, como se não percebesse o rebuliço causado por sua presença. Alguns se aproximavam para puxar conversa, ofereciam bebidas, pediam licença para sentar à mesa. Outros tentavam provocá-lo. Ele apenas sorria discreto, e voltava aos escritos.
O estabelecimento prosperou graças à bisbilhotice. Café preto com pão e manteiga passou a ser destaque no cardápio, com nome próprio: "Eloquente". Em pouco tempo era o mais pedido.
Então, numa tarde de outono, enquanto o sol tingia o céu de alaranjado, ele ergueu os olhos do caderno. Fez menção de falar.
A expectativa tomou conta, espraiou-se em ondas para rua, pela vizinhança, pelo bairro. Silêncio sideral cobriu toda a vila.
Até uma voz esganiçada rasgar o ar como quem risca um giz no quadro negro.
— Acho que a vida é isso aí mesmo, né? A gente vai levando.
Olharam-se uns aos outros. Um novo tipo de silêncio, estupefato.
A voz rascante prosseguiu:
— No fim das contas, todo mundo quer é ser feliz. E comer bem.
Sônia soltou a xícara. Fagundes parou de secar os copos. Betina fechou o diário, com ódio.
O mito desmoronou. A decepção abateu como um trovão surdo. Não era poeta, nem diplomata, nem líder, nem revolucionário. Era apenas um homem com ideias que diziam nada castigando os ouvidos. Um café preto com pão e manteiga.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirBom texto e contexto.
ResponderExcluirAh, se todos tivessem pelo menos café e pão com manteiga...