Alguma coisa errada não está certa
(Delman Ferreira)
Cris conversava com Tina que, além de irmã mais velha, é a melhor amiga.
— Ele anda estranho, arisco, meio escabreado.
— Como assim?! - pergunta a irmã, com expressão curiosa.
— Anda de segredinhos. Antes, sempre deixava o celular aberto, nem tinha senha. De uns dias para cá, atende falando baixinho ou apaga as mensagens assim que lê.
— Ramiro continua apaixonado por ti, disso ninguém duvida. Tu estás vendo coisas.
— Também pensei que fosse da minha cabeça. Tipo insegurança de quem está fazendo quarenta e não quer saber de falar nisso. Até descobrir um fio de cabelo no paletó dele, comprido, loiríssimo.
— Tens razão, isso é estranho. Mas vai com cuidado, não faz nenhum escândalo sem saber de tudo direitinho.
— Não sei se vou me segurar.
— Faz o seguinte, se houver coisa escondida, ele vai se entregar. Vai inventar alguma desculpa furada pra sair sozinho. Quando ele fizer isso, tu vais seguir e ver o que acontece.
— Boa. Vou tentar fazer assim.
No sábado seguinte, o marido chegou com a conversa de pescar com uns amigos, só voltaria no domingo.
— Pescar?! Tu nunca fosse de pescar, que história é essa? — Cris questionou indignada.
— Pescar é só desculpa para tomar cerveja, tu sabes como eles são. É só um jeito de ficar longe de casa umas horas. Depois, compram uns peixes frescos no mercado.
— E tu também queres ficar longe de casa, longe de mim?
— Claro que não, minha flor! Eu só quero tomar umas cervejas e dar umas risadas. É a mesma coisa quando vou jogar futebol. Sabes que sou um perna-de-pau, só vou lá pela cerveja e pela risada.
— Hum, sei! — Cris fingiu acreditar, beijou o marido e não tocou mais no assunto.
Contou para a irmã sobre a desculpa esfarrapada da pescaria. Tina insistiu que devia segui-lo.
— Não perde essa oportunidade. Vais ter uma surpresa, tenho certeza.
Já era escuro quando ele saiu. Noite sem luar.
Sentindo-se como num filme, Cris foi atrás. Até chegar a um galpão velho, com jeito de abandonado. Sem ser percebida, seguiu. Tão logo ele passou, a grande porta automática fechou num baque seco, brusco. Cris encontrou uma pequenqa porta lateral. Entrou ressabiada.
Estreitas frestas no telhado deixavam passar apenas uma réstia de luz da rua. Não conseguia enxergar nem as próprias mãos.
Esbarrou em alguma coisa, pareciam barris empilhados. Seria um galpão de bebidas? O que Ramiro vem fazer aqui? Começou a entrar em pânico.
— Que lugar é esse? Ramiro estará metido com algo ilegal? — quase ouvia os próprios pensamentos.
Já nem pensava mais em outra mulher. Passou a imaginar o marido envolvido com estranhos. Gente perigosa. Drogas. Armas. Polícia. Sabe lá o quê. Já se via protagonista de uma série, perseguida por uma gangue de milicianos traficantes.
Ouviu um rangido. Foi na direção. Espécie de corredor entre objetos, mal conseguia se deslocar. A escuridão ficava ainda pior. Suor frio. Coração disparado. Medo e curiosidade.
Não podia recuar. Precisava salvar Ramiro.
Seguiu pelo corredor. Tensão nas alturas. Sensação de ouvir as batidas do coração como se fosse em uma caixa de som. Arrastou-se, cada pé explorando o chão, medo de tocar em algo vivo. Um rato, uma barata! Até encontrar o que parecia ser uma porta. Prendeu a respiração. A cabeça mandava seguir, as pernas tremiam, pareciam ter vontade própria, negavam-se a obedecer. Todos os músculos prontos para reagir. Empurrou devagarinho. Coração indeciso entre parar ou disparar.
Jatos repentinos de luz. Um jorro de vozes.
— Surpresaaa!!!!
— Parabéns pra você / Nessa data querida / Muitas felicidades / Muitos anos de vida.
Muito traíra essa Tina. Quase mata a irmã de tensão e medo. Gostei, bons ingredientes de suspense, imprimem o leitor a buscar o desfecho final.
ResponderExcluirO conto é ótimo, mas o título melhor ainda!
ResponderExcluirMuito bom.
ResponderExcluirGostei do conto. Bem escrito. Surpreende.
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