Tunga, o elefante que sonhava voar
(Delman Ferreira)
Sentado no banco da praça, com o laptop no colo sobre a pasta da escola, Tunga assistia vídeos, filmes, documentários, a tudo o que contivesse águias sobrevoando os Andes.
— Que pena! — exclamou. Tunga lamentava não poder sobrevoar o mundo como aquela águia.
Depois de longo suspiro, fechou o laptop e dirigiu-se à Biblioteca Pública Municipal de São Francisco de Baixo. O espaço de pouco mais de 50 metros quadrados mal comportava pequenas estantes com livros empoeirados e revistas do tempo em que ainda se liam revistas. Cinco modestas mesas, sobreviventes da última enchente, para abrigar os raros visitantes.
Saudou timidamente a bibliotecária. Ouviu os suspiros poéticos de Dona Lourdes. Tunga sempre a imaginou como um personagem esquecido de Firmino Gonçalves, autor romântico, nascido quase 200 anos atrás, em 1831, no baixio de São Francisco. Lourdes, na flor da idade, ainda em botão, talvez tenha sido um flerte de juventude do autor, inspiração para as sonhadoras moçoilas de seus futuros romances escritos depois de se mudar para a capital, no Rio de Janeiro. Fora esquecida ali na biblioteca e, assim como tantos livros e revistas, jamais alguém lhe dirigiu um olhar. Nem a Morte.
No fundo da estante, debaixo da pilha de revistas coloridas e livretos de propagandas de remédios com crianças e mamães sorridentes, encontrou o único exemplar existente de um livro atemporal. O “Alfarrábio da Transmigração”.
Tunga era atarracado, arredondado e desajeitado. Cabelos espetados, olhos miúdos, lábios finos que mais pareciam um corte de navalha. Quadris largos, coxas e braços grossos, puro toicinho sem músculos. Pés pequenos, sensação de permanente desequilíbrio. Nariz adunco. Queixo recolhido, denunciando profunda timidez. Desprovido de carisma. Solitário, vivia desviando de pessoas, fossem adultos, fossem de sua idade. Não conseguia sentir-se incluído em nenhum agrupamento, nem na própria família. Sempre esquivo, jamais chamando a atenção, sempre nas sombras ou com as sobras.
Enquanto meninos e meninas de sua idade, aos bandos, ensaiavam passinhos de danças sem sentido, embalados e hipnotizados por algoritmos celulares, Tunga se refugiava na Biblioteca.
Mas o mais curioso em Tunga não eram a aparência ou a solidão, era sua alma. Dentro dele, batia o coração de um elefante.
Sim, um elefante. Tunga sentia-se grande, majestoso, com pés firmes que poderiam estremecer a terra. Quando caminhava, ainda que fizesse quase nenhum barulho, imaginava-se provocando tremores. Seu bramido ecoava por toda a floresta. Quando ele e a manada desfilavam espalhafatosamente, todos se recolhiam, respeitosos.
O reflexo em poças d’água sempre o contrariava, mas ele ria e dizia para si mesmo: o mundo é incapaz de perceber.
Mas, não era apenas isso. Havia outro fato desafiador na personalidade de Tunga. Aquele coração de elefante acalentava sonho ainda mais ousado: voar. Tunga sonhava voar, sobrevoar os Andes, tal qual imponente águia.
Queria abrir asas largas como horizontes, planar sobre montanhas, olhar para o mundo lá do alto, sentir-se dono do destino.
Tirou o livro debaixo das revistas. Escolheu mesa de canto, detrás das outras. Caso entrasse mais alguém, mal o perceberia. Abriu o Alfarrábio aleatoriamente. Um pedaço de papel escrito à mão caiu como se soprado.
Em letras miúdas, o manuscrito ensinava a desligar-se de si mesmo. Transmigrar-se para outro ser vivo. Mas alertava ser experiência extrema, nem todos seriam capazes de suportar o desgaste energético exigido. Por fim, determinava o manuscrito, era necessário que o coração desejasse voltar. Para assegurar um retorno seguro à vida terrena era necessário ter laços profundos com um ser que vivesse além dos tempos.
Tunga sentiu explosão de alegria e raiva simultâneas. Alegria pela possibilidade de realizar o sonho de voar, mesmo carregando alma de elefante. Ao mesmo tempo, raiva a ponto de deixar o livro cair da mesa. Afinal era desprovido de forças, mal se mantinha em pé. Onde reuniria a energia necessária para a transmigração? Além disso, onde encontraria um ser capaz de viver além dos tempos?
Ao abaixar-se para juntar o livro caído, por detrás da nuvem de poeira, Tunga percebeu a bibliotecária. Dona Lourdes, a personagem romântica dos tempos de Firmino Gonçalves. A Biblioteca era sua única ligação com a vida, o único local em que se sentia livre, para o qual desejaria retornar. Lourdes fora esquecida pelos tempos. Era seu Fio de Ariadne.
Mas e a energia, de onde tirar forças para enfrentar a transmigração? Ora, ora, a força estava ali, desde sempre, dentro dele. Ele era um elefante, um portento!
Tunga mergulhou no Alfarrábio das Transmigrações e voou. Além, muito além de São Francisco de Baixo. Foi-se para os Andes, atravessou o Pacífico, terras d’além mar, tornou-se dono do próprio destino.
Tunga nunca mais voltou às sobras ou às sombras.
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