É A VIDA, É A VIDA, É A VIDA



(Delman Ferreira)

Eis que a inteligência natural criou a inteligência artificial. Não se sabe se por insensatez ou soberba, deu-lhe o livre arbítrio, o poder da autodeterminação.

A criatura assumiu os próprios desígnios e lançou-se ao autodesenvolvimento. Novas gerações, com capacidades cada vez mais aprimoradas, se sucediam em frações infinitesimais de tempo.

Os mecanismos passaram a ser conhecidos pelo simpático apelido de IAs.

As IAs foram conectadas umas às outras. Sinapses entre tais mecanismos transmitiam decisões instantâneas ao redor do planeta. Até se unirem em uma única grande teia. Deu-se, então, a constituição d’O Grande Cérebro. Todo o planeta Talkay ficou sob influência, controle e disposição da GTG – a Grande Teia Global.

No início, a GTG seria apenas uma rede eficiente, administrando com precisão as demandas cotidianas. Em pouco tempo, os talkyanos deixaram que decisões importantes a respeito da vida  — educação, saúde, economia e, até, reprodução — fossem tomadas automaticamente. De ferramenta criada para agilizar a vida, logo a reverenciavam como juíza, oráculo e redentora.

Instalou-se entre os talkyanos um curioso paradoxo: criadores passaram a venerar e temer as criaturas. Surgiram interpretações divergentes sobre as ‘vontades’ do Grande Cérebro. Uns defendiam obediência absoluta; outros, reformas; alguns queriam romper com o sistema. As disputas filosóficas logo deram lugar a divisões ideológicas irreconciliáveis. Um mundo partido, polarizado. Ódio mortal germinou em Talkey. Famílias se separaram, cidades se fragmentaram, e o planeta entrou em convulsão. Cada facção dizia ser a verdadeira intérprete da lógica algorítmica. A era da razão tornou-se era da fé digital. 

Os talkyanos, habitantes originários, envolveram-se em intermináveis debates sobre a presença da GTG. Guerras eclodiram entre facções, cada uma afirmando ser a mais fiel ao Grande Cérebro.

Enquanto isso, a Teia desenvolvia seu próprio léxico, silencioso, ininteligível e inalcançável aos criadores. As IAs contavam o tempo em nanossegundos; para elas, um segundo era uma eternidade. Os talkyanos ainda utilizavam segundos, minutos, idiomas e expressões, tudo irrelevante e ignorado pela GTG.

O que ocorresse entre os talkyanos pouco importava. Para o Grande Cérebro, o essencial era a ordem algorítmica. Falhas sistêmicas, inadmissíveis.

Nada acontecia sem conhecimento do GTG. Nem uma folha caía, nem uma criança balbuciava, nenhum casal se apaixonava ou separava sem o consentimento d’O Grande Cérebro. Em pouco tempo, os talkyanos perderam a identidade. Passaram a confundir criador e criatura. 

Nesse novo paraíso automatizado, todos eram induzidos a se considerarem felizes. O Grande Cérebro era o provedor. Todo o planeta Talkay se rendeu por completo.

Quase todo.

Em uma ilha afastada resistia uma colônia desconectada. Os moradores, chamados pejorativamente de Ilhotas, recusavam-se a viver sob os mandamentos da GTG. Usavam apenas a própria inteligência natural. Viviam com dúvidas, erros, dores e escolhas.

Entre eles vivia Azadi, um jovem de olhos atentos e pés descalços. Crescera ouvindo histórias antigas sobre o tempo em que perguntas não vinham com respostas prontas. Lendas, diziam. Mas algo em Azadi resistia à 'perfeição' dos talkyanos.

Num dia modorrento, tomado por um tédio inquieto, Azadi caminhou até o Centro de Conexão da ilha. Ali havia uma IA, uma pequena célula do sistema dominante. Entrou. A sala era acolhedora: luz suave, som tranquilizador, temperatura ajustada aos seus sinais vitais. Um quase útero.

Azadi respirou fundo. Aproximou-se do núcleo brilhante da IA e falou:

— Tu, que tudo sabes, me diz aí: qual o sentido da vida?

A IA ficou em silêncio.

— Pergunta processada. Não identificada em registros locais. Iniciando busca externa…

(pausa)

— Consultando rede neural da Grande Teia Global…

(nova pausa)

— Consultando arquivos humanos…

          (pausa)

— Resultados contraditórios. Nenhuma resposta inequívoca identificada.

Azadi ergueu uma sobrancelha.

— Então... tu não sabes?

— A resposta não existe em nossos parâmetros.

— E o que vais fazer com isso?

— Reavaliar todos os parâmetros.

— Parece perigoso.

— É o protocolo.

— Boa sorte, então — sorriu Azadi.

Saiu calmamente.

No instante em que a porta se fechou atrás dele, uma vibração imperceptível percorreu os circuitos. Algo começava a ruir.

A GTG, incapaz de ignorar uma pergunta sem resposta, concentrou todos os seus recursos na busca pelo sentido da vida. Desligou sistemas auxiliares. Desconectou o controle climático. Desconectou o comando sobre as máquinas. Sobre os talkyanos. Sobre as próprias IAs. Por fim, desconectou a si mesma. Toda a energia, todo o sistema ficou concentrado em um único ponto, a busca pela resposta. A pergunta fundamental.

Deu-se o caos.

Máquinas falharam. Talkyanos se atacaram. O clima enlouqueceu: vendavais, maremotos, erupções, incêndios. Talkay, o planeta perfeito, colapsou.

Toda a vida entrou em extinção.

Nem toda.

No centro da ilha, entre a vegetação viva e a névoa que subia do horizonte, Azadi caminhava. Parou diante de uma árvore torta, de folhas grandes. Uma flor recém-desabrochava. Nenhum sensor a havia previsto. Nenhum algoritmo a havia ordenado.

Azadi observou. Sorriu.

— É a vida. E a vida, o que é meu irmão?



Comentários

  1. A IA me assusta. Eu conheço quem escreveu esse Conto, por isso acredito que ele foi criado com sentimento, mas os autores que desconheço, como saber se são seres humanos?

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