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Mostrando postagens de junho, 2025

Um Corpo Nu

De repente, todos os olhos se fixam em mim. Mas não fiz nada além de existir como a natureza me moldou. Pés descalços, corpo nu, pele beijada pelo sol e pelo vento. Assim vivi desde sempre. — Você deve adorar a Deus — dizem, ajoelhando-se diante de paus cruzados e palavras severas. — Você deve servir ao rei — insistem, empunhando bandeiras que tremulam no vazio. Ouço, mas não compreendo. Por que me curvar diante de quem nunca vi? Por que falar com o céu, se a terra me responde com frutos, os rios com peixes, a chuva com água fresca e a lua me guia em silêncio? — Você não pode andar nu — repetem, olhos inquietos. Tentam cobrir meu corpo com trapos ásperos, como se quisessem me vestir de culpa. Nunca soube o que era pecado até dizerem que meu corpo ofende. Respeitei a natureza como mãe, casa, companheira. Comi quando tive fome, bebi quando tive sede, dormi com os animais. Nenhum deles exigiu mais que presença e cuidado. Agora, querem me pôr entre paredes que abafam o canto dos pássaros. ...

É A VIDA, É A VIDA, É A VIDA

(Delman Ferreira) Eis que a inteligência natural criou a inteligência artificial. Não se sabe se por insensatez ou soberba, deu-lhe o livre arbítrio, o poder da autodeterminação. A criatura assumiu os próprios desígnios e lançou-se ao autodesenvolvimento. Novas gerações, com capacidades cada vez mais aprimoradas, se sucediam em frações infinitesimais de tempo. Os mecanismos passaram a ser conhecidos pelo simpático apelido de IAs. As IAs foram conectadas umas às outras. Sinapses entre tais mecanismos transmitiam decisões instantâneas ao redor do planeta. Até se unirem em uma única grande teia. Deu-se, então, a constituição d’O Grande Cérebro. Todo o planeta Talkay ficou sob influência, controle e disposição da GTG – a Grande Teia Global. No início, a GTG seria apenas uma rede eficiente, administrando com precisão as demandas cotidianas. Em pouco tempo, os talkyanos deixaram que decisões importantes a respeito da vida  — educação, saúde, economia e, até, reprodução — fossem tomadas a...

Grilos e vagalumes

(Delman Ferreira) Negrume absoluto. Nem vagalumes pisca-piscam. Silêncio profundo. Nem grilos ousam cricrilar.  Na meia noite infinita um ponto de luz silva. No meio da meia-noite, um estrondo. A grande explosão.   Clarão instantâneo quebra o silêncio em infinitos estilhaços.  Uma bola se espalha em todas as direções. Incontáveis esferas concêntricas sucedem esferas concêntricas. Onda refratária espoca, rasga o negrume.  O meio da meia noite, estilhaçado, multiplica-se  Constelações pipocam pontos de luz Buracos, surgem tão negros que nem a luz atravessa Silvam raios multidirecionais O tempo desencadeia o tiquetaquear Precipita-se o infinito sem começo nem fim Emana o clarão original.  Vagalumes pisca-piscando. Ecoa o estouro primal. Grilos cricrilando.  Quem esqueceu a panela de pressão no fogo?

Cadê as flores que ficavam aqui?

(Delman Ferreira) Com olhar panorâmico, a pequena abelha examina toda a sala.  Sobre a mesa, um mapa antigo, amarelado pelo tempo. Minérios de territórios em disputa. Em torno, homens imponentes, trajando uniformes de gala impecáveis, observam cada marca com olhos cobiçosos, atentos e frios. Medalhas reluzem sob a luz branda do salão. Refletindo mais do que conquistas, revelam ambição, domínio, decisões tomadas longe do alcance do povo. Entre os galardões e expressões contidas, paira o silêncio denso de quem está prestes a decidir o futuro de terras onde jamais colocaram os pés, pretendem apenas extrair a riqueza.  O mapa não é um simples tabuleiro. É cenário de guerra. Planos e estratégias, jogos de força, demonstrações de poder, visam conquistar o maior número de sítios.  Tensos momentos em que olhares cruzam o ar sobre a mesa e se fuzilam mutuamente. O silêncio é rasgado pelo zumbido da abelhinha. O ambiente se torna ainda mais nervoso. A pequena intrusa pousa no quepe...

Tunga, o elefante que sonhava voar

(Delman Ferreira) Sentado no banco da praça, com o laptop no colo sobre a pasta da escola, Tunga assistia vídeos, filmes, documentários, a tudo o que contivesse águias sobrevoando os Andes. — Que pena! — exclamou. Tunga lamentava não poder sobrevoar o mundo como aquela águia. Depois de longo suspiro, fechou o laptop e dirigiu-se à Biblioteca Pública Municipal de São Francisco de Baixo. O espaço de pouco mais de 50 metros quadrados mal comportava pequenas estantes com livros empoeirados e revistas do tempo em que ainda se liam revistas. Cinco modestas mesas, sobreviventes da última enchente, para abrigar os raros visitantes. Saudou timidamente a bibliotecária. Ouviu os suspiros poéticos de Dona Lourdes. Tunga sempre a imaginou como um personagem esquecido de Firmino Gonçalves, autor romântico, nascido quase 200 anos atrás, em 1831, no baixio de São Francisco. Lourdes, na flor da idade, ainda em botão, talvez tenha sido um flerte de juventude do autor, inspiração para as sonhadoras moçoi...