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Mostrando postagens de setembro, 2025

Bigode e artesão

(Delman Ferreira) Vaidoso, Manoel Cândido cultuava os bigodes como quem cuida de uma delicada e rara orquídea. Jamais um fio fora de ordem, alinhamento militar, harmonia musical, lado esquerdo e lado direito espelhos um do outro. Obra de arte. Nem o próprio Manoel ousava tocar. Uma única pessoa no mundo estava autorizada a retocar e modelar. O barbeiro Porfírio cuidava dos bigodes de Cândido como um artesão no domínio de seu ofício, um mestre perseguindo a perfeição. Naquela manhã de segunda-feira, como repetia todos os dias, Manoel investigou-se diante do espelho, mirou de um lado, de outro, distanciou, aproximou. Admirou o bigode. Mas uma ruga de incômodo marcou a meditação. Percebeu um fio, uma ameaça rebelde a levantar-se contra a ordem unida. Nem pestanejou, decidiu imediatamente. Antes de qualquer outra providência, passaria no Porfírio. Abriu as janelas, olhou o horizonte, sondou o céu para ver a disposição das nuvens. Precisaria casaco? Guarda-chuva? Desceu para a Praça da Repú...

Cheiro de sonho

— Se aquele guarda não me segurasse, eu tinha pulado daquela pedra — vangloriava-se um dos guris. Clarinha, ainda um tanto assustada, contava como quase foi levada por uma onda. Meninas e meninos falavam alto, riam, trocavam fotos. Imitavam mergulhos no mar, descreviam as ondas, o vento, a areia, os siris. A praia da Joaquina era um mundo encantado na Ilha da Magia. Vevê observava de longe, encostado num canto do pátio da escola, olhos baixos, boca cerrada, lutando para não deixar escapar a frustração. Ele não foi no passeio do colégio. Os outros tinham conchinhas, ele, calos. — Não tenho dinheiro pra pagar excursão nenhuma — o pai foi definitivo, não houve jeito. — Além disso, tem as galinhas, os porcos, a vaca prenha. E u preciso de você aqui.  Não discutiu, jamais discutia. Mas, por dentro, não havia como segurar o ressentimento. Enquanto os outros narravam aventuras ensolaradas, Vevê lembrava o cheiro do curral, o balde pesado com água, o mugido da vaca. Olhos atentos, força n...

Uma TV usada

(Delman Ferreira) Severino é um desses milhões de brasileiros e brasileiras esculpidos em terra esturricada … pelo sol inclemente … na chuva… no vento… no dia-a-dia desesperançoso. Homens e mulheres de extrema economia de palavras, jamais deixando escapar qualquer vestígio  de seus sentimentos.  Severino conseguia ser espontâneo apenas com os animais.  A experiência daquele dia, porém, foi incontrolável e inesquecível. Entrou em casa de surpresa com uma televisão usada, trocada com um primo da cidade por uns trabalhinhos. Quando ligou a TV e apareceram as primeiras imagens, viu nos olhos dos filhos e da mulher uma felicidade nunca estampada. Recebeu o apertado abraço de bracinhos tornados incontroláveis pela alegria. Severino não resistiu. Por seu rosto curtido rolaram indisfarçáveis lágrimas — não de fraqueza, mas de vitória; não de tristeza, mas de um orgulho tão intenso que mal cabia no peito. Tempos atrás, pelo rádio ou de boca em boca, apareceram propagandas do gover...

Por trás de montanhas, há mais montanhas

(Delman Ferreira) Maria Fumaça. De Tiradentes a São João Del Rei. Minas Gerais. 50 minutos de viagem.  Dois séculos transitam naqueles bancos de madeira — estreitos, duros, desconfortáveis. Um portal no tempo. A Maria Fumaça transportava os sonhos, as obrigações e recomendações de sinhozinhos e sinhazinhas, recém saídos da meninice, levados para a cidade grande. Estudar — deixar pra trás as vadiagens da infância e as amizades pueris. Serão os novos barões e baronesas. Aquela mesma Maria Fumaça, em vagões ainda menos confortáveis, também transportava esperanças e desesperanças daqueles a quem só restava abandonar a família e os amigos, suas próprias histórias, suas vidas, seus trens. Rumo ao desconhecido. Meninos e meninas em fuga da servidão. Gente sofrida atrás de cura para males implacáveis.  O ventre daquela Maria carregava artistas, doutores, presidentes. Futuras frustrações e futuros campeões. Um Brasil escrito sobre trilhos. Orgulhosa e imponente, a velha senhora anu...

Manda quem pode, obedece quem tem juízo

(Delman Ferreira) Cláudio, meu amigo soteropolitano, volta e meia conta histórias da Bahia que flertam com o realismo fantástico. Tragédia de proporções bíblicas. Incêndio na fábrica de explosivos. Estrondo tão forte que até os defuntos tremeram. Incontáveis feridos. Uma centena de mortos. Não havia hospital. Nenhum transporte capaz de levar tanta gente até outros centros. Ninguém sabia o que fazer. Perdeu-se o controle por completo. Suando frio, bigode retorcido, o despreparado prefeito, espremia a cabeça tentando lembrar de alguém para controlar a situação. — Sargento Trovão!  — soprou uma voz — Ele vai dar um jeito. Naquela região, Trovão era um gigante. O mais alto da cidade, negro, braços e pernas como troncos. Na verdade, nunca foi militar, nem sargento, nem recruta — escapou do quartel por graça do pé-chato. Ganhou o apelido pela voz tonitruante e a forma autoritária de se expressar. Sempre dando ordens, sempre trovejando. Não admitia ser questionado.  — Não me ven...