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Mostrando postagens de agosto, 2025

Alfinete

  (Delman Ferreira) Alfinete não era um simples jogador. Chamá-lo de artista também não dava a dimensão de sua capacidade de enlear e atordoar os adversários, encantar a torcida, mesmo os contrários, ou fazer jogadas desafiando a ciência. Meio-campista refinado, cerebral, elegante, cabeça erguida, peito aberto, olhos antevendo o pensamento do adversário. A bola, acariciada, compreendia e cumpria seus comandos com prazer e fervor. — Alfinete, quantas vezes já te disse, corre, penetra pela direita! — Técnicos desesperados perdiam a voz tentando fazê-lo correr atrás da bola. — Mas, Professor, quem precisa correr é a bola e ela vai onde eu quero. Passes curtos e rápidos. Ou cruzamentos longos, através de campos e tempos. Sabia onde estariam os colegas, antecipava, colocava a bola como um míssil, no ponto exato para o companheiro explodir rumo ao gol. — Então, se era tão bom, onde foi parar? Porque nunca se ouviu falar dele? — Ah! Temos aí mais uma das tantas histórias de profecias atro...

Vale mais um gosto do que dois vinténs

 (Delman Ferreira) O Pai do Warnel fazia o melhor Mocotó do mundo… e arredores. Havia um acordo com os orixás: todo aniversário ele preparava paneladas de Mocotó e chamava o Morro. Não sei se por exigência dos santos ou outra razão secular, a única bebida permitida era vinho tinto doce. Para driblar o vinho doce, picávamos limão e colocávamos gelo. — ...e seja o que Deus quiser! Alquimia, samba, mocotó, uma ou outra azaração, muitas certezas e muita discussão. Debatiam-se os destinos da Humanidade – e futebol, claro. Numa daquelas, quando o debate já alcançava elevados decibéis, alguém veio com a informação de que o mocotó era extraído do tutano das patas, ou melhor, do casco do boi. E cada boi fornecia uma quantidade muito reduzida. Diante do inigualável Mocotó do Pai do Warnel, essa informação encheu nossas certezas de dúvidas. Afinal, se os bois sofressem alguma gripe, poderíamos ter escassez. A falta de mocotó estremeceria as estruturas da sociedade. — Sem colágeno,...

Cabeça de porongo

(Delman Ferreira)            Ademir trouxe as frutas e verduras para Dona Gertrudes. Como fazia toda semana, ela lhe ofereceu um pão e um copo de café. Enquanto aguardava na porta da cozinha, ele ficou observando o quintal. Outros meninos da mesma idade jogavam futebol.  O olhar ficou preso na bola rolando no chão batido. Aos poucos, a imaginação voou. Ademir não era mais um entregador de verduras de 11 anos. Era Ronaldinho.  Prepara-se para bater uma falta. A torcida faz tremer o estádio. O goleiro apronta a barreira. Ele ajeita a bola. Olhos nos olhos da defesa. Observa o canto superior da trave. Calcula a posição do sol. A direção do vento. Conta passos para trás. O juiz apita. Como mágica, o silêncio toma conta do estádio. Ninguém ousa nem respirar. Ele avança como uma onça. Chuta alto. A bola sobe em direção ao céu. Enfeitiçada, desce de repente. No ângulo. Contrapé do goleiro. Impossível alcançar. A torcida explode como se o mundo fosse...

Gaiola dourada, bola murcha, riso solto

(Delman Ferreira) Joaquim Carneiro Leão de Oliveira e Silva cresceu cercado de ouro. Nada lhe faltava. Tudo parecia existir apenas para ele. Havia um exército de servidores sempre prontos a satisfazer qualquer capricho. Babás, motoristas, professores, nutricionistas, terapeutas - profissionais à disposição 24 horas por dia. Carros blindados. Clubes privados. Mundo inexpugnável.  Aos treze anos, o vazio. Passou a sentir como se nada fosse natural ao seu redor. Os sorrisos eram mecânicos, os sentimentos coreografados, carinhos agendados. Palavras submissas, olhares subservientes. — Muito bem, senhor Joaquim, o senhor nunca deixa de nos surpreender. Cada pincelada contém leveza e profundidade — os elogios soavam sem vida, sem emoção, como flores de plástico. Não conhecia o peso da espera, o susto da perda, a decepção da negativa, o esforço da conquista. Ao sinal mais imperceptível, seus desejos eram satisfeitos. Negaram-lhe a dor, a frustração, a incerteza.  Descobriu a dor de nã...