Postagens

Mostrando postagens de julho, 2025

Sonhar com zebra da jacaré da boca grande

  (Delman Ferreira) Depois do futebol das quartas, entre caixas de cerveja e arroubos de teorias conspiratórias, a resenha seguia acalorada. O tema da vez era o Jogo do Bicho, assunto sagrado como discutir convocação da seleção. — Só não joga no Bicho quem vive na ilusão de ver o salário vencer o final do mês. — afirmava Cacau com irônico ceticismo.  — No Bicho só quem ganha é a banca, não tem jeito! — decretou Paulão, com a solenidade de quem cita um evangelho. Ouviam-se os costumeiros jargões e havia quem jurava conhecer o tio-do-vizinho-de-um-amigo capaz de acertar toda semana. — Aposto como tem algum jeito de ganhar da banca — rebateu Sérgio, limpando a espuma da boca com o dorso da mão. — É só programar um sistema pra driblar as regras. Ao seu lado, Tadeu, parceiro de TI, futebol e cerveja, concordou fazendo sinal de positivo com o dedo e acenando a cabeça. Os dois trabalhavam no setor de informática de uma multinacional com quase cinco mil trabalhadores, dessas com a...

Francês de estimação

(Delman Ferreira)  Não atendia aos padrões comerciais de beleza masculina, mas o forte sotaque afrancesado o cobria com  charme irresistível e se impunha sobre qualquer outro quesito. Dizia ser proveniente da pequena cidade de Metz, no nordeste da França.       — A região ainda guarda traços de colonização romana. Encravada entre Alemanha, Bélgica e Luxemburgo, uma encruzilhada de culturas refinadas — gostava de dizer com sotaque cheio de biquinhos e acentuação nos finais das palavras. Ninguém sabia direito onde ficava Metz, mas soava tão francês quanto chique. Jean Pierre, com cachecóis leves no pescoço e sotaque cativante, aparecera como quem vinha de um mundo superior. Chegava aos lugares com passos suaves e elegância estudada. Ainda não alcançara os trinta anos, mas já se dizia experiente em gastronomia, política europeia, filosofia existencialista e vinhos. Não raro confundia Sartre com Voltaire, ou citava memes de internet como se fossem pura Sim...

Briga de escorpiões é prenúncio de bom tempo

(Delman Ferreira) Os Mercúcio, donos de terras, do gado, mercados, escolas, da rádio e até do alto-falante na Praça da Matriz. Os Tebaldo controlavam contratos públicos, transportes, postos de saúde, a fábrica de cimento que enchia de poeira os pulmões dos moradores, a outra rádio e o alto-falante na Praça do Mercado. Desde tempos imemoriais viviam em trégua silenciosa, repartindo votos, mandos e desmandos. Trocavam favores, casavam os filhos, revezavam-se no poder. Ninguém conseguia viver sem ser benzido por uma das famílias. Comércio? Negócios? Só os autorizados. Empregos? Fossem porteiros, coveiros, vigilantes, professores, prefeitos, deputados, secretários, párocos, pastores, magistrados, todo e qualquer cargo público era tratado como propriedade de Mercúcios e Tebaldos. Não havia regulamentos, placas, cercas ou avisos. Apenas olhares, silêncios, vieses calados. Regras não ditas, porém, ninguém desconhecia. As pessoas portavam-se com cautela, como se dependessem de autorizaçã...

Café preto com pão e manteiga

(Delman Ferreira) Chegou numa terça-feira à tarde. Sem alarde, sem bagagem, sem passado. Apenas entrou e sentou-se no canto mais afastado. Aceitou o cardápio que a garçonete lhe ofereceu.  Com gestos simples, e scolheu dois itens,  café preto e pão com manteiga. Nada disse. Serenidade que beirava o enigma. Leu  os dizeres no espelho atrás do balcão : Café Fecundo, aqui se pratica a nobre arte de jogar conversa fora. Desde então, passou a frequentar o mesmo Café, no mesmo horário. Sempre calado, lia jornais, rabiscava um caderno surrado. Se alguém o cumprimentava, sorria com aceno mínimo, educado, impenetrável. Jamais emitia uma palavra. O silêncio travestiu-se de mistério. — Tem um quê de artista europeu — murmurou Clara, garçonete do turno da tarde. — Parece mais jeito de exilado, um revolucionário — arriscou Sônia, professora aposentada, certa de que o silêncio era típico de um passado político. — Olhar de quem já sofreu por amor — sussurrou a adolescente Betina, ...

Alguma coisa errada não está certa

(Delman Ferreira) Cris conversava com Tina que, além de irmã mais velha, é a melhor amiga. — Ele anda estranho, arisco, meio escabreado. — Como assim?! - pergunta a irmã, com expressão curiosa. — Anda de segredinhos. Antes, sempre deixava o celular aberto, nem tinha senha. De uns dias para cá, atende falando baixinho ou apaga as mensagens assim que lê. — Ramiro continua apaixonado por ti, disso ninguém duvida. Tu estás vendo coisas.  — Também pensei que fosse da minha cabeça. Tipo insegurança de quem está fazendo quarenta e não quer saber de falar nisso. Até descobrir um fio de cabelo no paletó dele, comprido, loiríssimo. — Tens razão, isso é estranho. Mas vai com cuidado, não faz nenhum escândalo sem saber de tudo direitinho.  — Não sei se vou me segurar. — Faz o seguinte, se houver coisa escondida, ele vai se entregar. Vai inventar alguma desculpa furada pra sair sozinho. Quando ele fizer isso, tu vais seguir e ver o que acontece. — Boa. Vou tentar fazer assim.  No sába...